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No Olho da Rua - Julio Fernando Moreira


COMUNICADO AOS LEITORES DESTA PÁGINA.

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 ESTE AUTOR FICARIA MUITO FELIZ SE VOCÊS O PRESTIGIASSEM.
OBRIGADO E BOA LEITURA.

 

 

 

 

 

No olho da rua

Uma história real

 

 

 

 

Julio Fernando Moreira

 

 

 


Durante muito tempo achei que tivesse cometido um grande erro ao escrever e publicar este livro; acreditava apenas ter-me exposto e que ninguém se interessaria pela história de um rapaz que deixou Minas Gerais e veio se aventurar como ator no Rio de Janeiro, e acabou encontrando uma realidade nada alvissareira. História feia e, dependendo do olhar, até mesmo deprimente, uma vez que vivemos num mundo em que se valoriza o glamour e os grandes feitos. Passados já alguns anos desde a primeira publicação (1999), minha opinião mudou consideravelmente. Não em relação à nossa sociedade, que continua valorizando “o glamour e os grandes feitos”, isto é, as aparências, mas em relação à minha exposição, pois não mais creio que “No olho da rua – uma história real” tenha sido um erro ou um tiro no pé. Pelo contrário, sinto-me bastante feliz por ter tido coragem de contar minha história; não são muitas as pessoas que descem ao fundo do poço e encontram forças para emergir; isso aconteceu comigo, sou um vencedor e este livro é a prova disso. Relendo suas páginas para uma (mais que necessária) correção pude perceber que, além de narrar a minha história, este livro é a prova viva de que sempre podemos dar a volta por cima, sempre é possível voltar a acreditar na vida; mais do que correções, fiz uma verdadeira volta ao passado e retornei certo de que eu não estaria aqui agora se não fossem aqueles dias. Sou grato por dividir com você esta parte da minha vida, consciente de que não tenho motivo para me sentir exposto de maneira pouco lisonjeira, nem mesmo envergonhado do que quer que seja.

Boa leitura.

O autor

 

 

 

 

Capítulo 1

UMA DECISÃO DIFÍCIL

Fazia algum tempo que eu estava parado ali tentando encontrar forças para entrar naquele lugar para buscar ajuda. O choque entre o que eu imaginava ser a Fundação Leão XIII e a realidade que se descortinava à minha frente era consideravelmente grande. Com as bolsas suspensas nas mãos e o olhar perdido, alheio ao burburinho à minha volta, fui  subitamente empurrado por um homem que, mais tarde, viria saber se tratar de um dos porteiros da instituição.

- Ei! Qual é, meu irmão, vai ficar aí parado atrapalhando a entrada? Ou entra ou sai do caminho, ele falou, asperamente, me empurrando para abrir espaço para os homens que aguardavam numa fila desorganizada e confusa: era um homem branco, magro, calvo, quase careca, um  pouco avermelhado, pequeno, franzino mesmo, que falava sem parar, sempre se dirigindo a todos na fila bradando ameaças, que  se tornavam mais sérias quando exibia, sem nenhum constrangimento, um pedaço de madeira fazendo com que os homens da fila se sentissem intimidados e tentassem, sem sucesso, manter a ordem.

Com o empurrão quase caí, e foi ainda cambaleando, sem esboçar nenhum tipo de reação, que tomei consciência de onde estava: “Seria aquele lugar, realmente, apropriado para uma pessoa, desempregada e desabrigada, procurar ajuda para tentar se reerguer?” “Que tipo de ajuda eu poderia receber ali dentro?”  “Não tinha outra saída, precisava mesmo de ser ali?” Essas, e muitas outras, eram as perguntas que, insistentemente, me fazia, em pensamento, sem obter nenhuma resposta. Realmente, eu estava diante de uma realidade dura e cruel. Justo eu que pensava ser o mais desgraçado de todos, mais isso, mais aquilo. Não podia acreditar no que via: o quadro mais aterrador que tinha encarado na vida. Nunca presenciara cenas de tamanha miséria, o ser humano num estágio de abandono lastimável: alguns homens deitados, ou caídos, com uma expressão no olhar em que facilmente se poderia ler: “fim de linha”; outros, sentados, como que aguardando numa fila à parte, não tinham expressão diferente; a mesma expressão podia-se ver naqueles, em maior número, que aguardavam na fila grande, em meio ao cheiro intenso de urina e fezes que impregnava o ar. Meus olhos passearam pela fila, fixando-se em cada rosto, e pude constatar que todos tinham a mesma fisionomia, alguns tinham um pouco mais de ódio no olhar, outros, talvez, um pouco mais de esperança; todos, sem dúvida, lembravam prisioneiros de guerra, segregados num campo de concentração sem saber o que esperar da vida. Verifiquei, também, que havia extremos: uns eram muito calados, pareciam emudecidos, mas havia os que falavam a respeito do governo, do custo de vida, da miséria, do FMI, do tempo que teria sido melhor, da esposa, dos filhos, da família, do emprego perdido, das drogas, da cachaça maldita. Busquei ali uma identificação, alguém que estivesse chegando do tipo: “é só por uns dias, logo me reerguerei”; não encontrei.

O porteiro pediu silêncio exibindo sua “arma”: chegara a hora da entrada, mas somente para aqueles que estavam na fila. Grande algazarra. Alguns tentavam passar à frente dos outros, se espremiam, acotovelavam-se, gritavam por ordem, reclamavam que estavam furando a fila, agora quase não dava para ver o porteiro, escondido atrás daquela barreira que se criara; de uma hora para outra, todos foram tomados por vigor estranho, até mesmo os que estavam deitados se levantaram; portavam um pequeno papel branco que, na hora de entrar, mostravam ao porteiro; quem não tivesse o papel era barrado, não adiantava argumentar, bêbados também não entravam. Indaguei e descobri que era a hora do jantar, única refeição servida aos homens durante todo o dia. Daí, toda aquela agitação.

Novamente, o porteiro me abordou, dessa vez, um pouco mais brandamente: queria saber se eu já tinha conversado com o serviço social. Respondi que não e ele me aconselhou que entrasse, pois as assistentes sociais só atendiam até às nove horas da noite, e já era quase isso; se eu não entrasse logo, certamente não seria atendido naquela noite e teria de dormir na rua. A possibilidade me apavorou, afinal de contas, eu estava ali justamente para evitar que isso acontecesse. Num impulso, peguei as bolsas, nessa hora no chão ao meu lado, e entrei. Lá dentro, procurei o serviço social e fui informado de que deveria esperar. Só então vi que muitos esperavam: homens, mulheres, algumas com crianças no colo, jovens e velhos aguardavam sentados em dois grandes bancos de cimento, um de frente para o outro, separados por um espaço em que transitava quem entrava e saía. Sentei-me do lado dos homens, pois havia essa separação, acendi um cigarro e logo começaram a me abordar: um queria um cigarro, outro a “vinte”, expressão como também  era conhecida a guimba de cigarro. Intimidado, atendi a ambos os pedidos. Fiquei sentado observando aquele lugar que durante algum tempo seria a minha casa. A realidade física me assustava: o prédio tinha ares de presídio ou hospício, impressão que se confirmava quando se ouvia gritos, discussões e repreensões, apesar disso, tentava me animar desviando o pensamento e afirmando para mim mesmo que tudo aquilo seria passageiro. O rapaz, um mulato fechado, com cheiro de cachaça, que me pedira cigarro, sentou-se ao meu lado e começou a contar a sua vida: era um homem trabalhador, estava ali porque tivera de abandonar sua casa às pressas, com a mulher e os filhos – nisto, apontou uma mulher escura, acompanhada de três crianças, uma de colo, visivelmente desnutrida, e duas outras, pouco maiores, agarradas a ela, igualmente mal alimentadas –; fora expulso de seu barraco no morro porque se negara a dar esconderijo a um bandido. Essa foi, basicamente, a história que continuei ouvindo até cantarem a senha que me entregaram na entrada. Sem me despedir, peguei as bolsas e caminhei para a sala do serviço social.

A assistente social, uma mulher morena e de estatura baixa que, por estar sentada, parecia menor ainda, mandou que eu sentasse e, sem meias delongas, começou a me interrogar: queria saber todos os meus dados para fazer um prontuário.

- O meu nome vai ficar escrito aí? perguntei.

- Claro! ela respondeu secamente, precisamos ter um mínimo possível de dados a seu respeito, sem o que não podemos cuidar do seu caso, e continuou a falar por alguns minutos, mas não me recordo exatamente o quê; não estava ali, a simples ideia de ficar “fichado” na instituição era assustadora.

- É só por um ou dois dias, o tempo que eu preciso para arrumar um lugar para ficar. Tem necessidade da ficha? tentei argumentar.

- Todos dizem a mesma coisa, meu senhor, disse ela sem levantar os olhos do papel, e com a caneta na linha em que deveria escrever o meu nome.

- Julio Fernando Moreira, falei com a voz trêmula.

A partir daí, se seguiu uma avalanche de perguntas: queria saber de tudo, mas principalmente o motivo pelo qual eu me encontrava sem moradia.

- Está desempregado? É ex presidiário? Quando foi a última vez que o senhor passou pela Fundação Leão XIII?

Quando ela, finalmente, terminou de preencher a ficha eu já não tinha certeza de nada; senti-me  invadido, tratado como uma coisa, um número numa estatística ou apenas mais um problema para a cidade, trocando em miúdos, um intruso.

- Está ruim em todos os lugares. Em Minas, no Rio Grande do Sul, na Paraíba... Está tudo do mesmo jeito em todos os lugares. O país está parado. Até São Paulo... ela completou diante do meu silêncio.

Logo a seguir, me informou que eu deveria procurá-la daí a três dias e que já podia ir, mas que tomasse cuidado com a bagagem; o bagageiro, onde poderia guardá-la, já estava fechado àquela hora.

- Acontece muito roubo aqui; é preciso ter  cuidado, ela me alertou, e, meio maternal, acrescentou: Vai, aproveita e janta; você deve estar com fome.

A possibilidade de colocar alguma coisa no estômago me deixou animado, por isso, apressei em deixar a sala do serviço social.

- Eu acredito que será por pouco tempo, disse com um sorriso amável nos lábios, depende, exclusivamente, de você, ela falou quando eu já estava saindo.

Deixei a sala com uma sensação boa: não seria tão ruim como eu estava imaginando, e se, realmente, dependesse de mim... Dali, eu fui direto para o refeitório, encontrei uma senhora e pedi o jantar, e ela respondeu, com visível irritação, que já tinha encerrado.

- O jantar é servido até às nove horas. Não posso ficar aqui a noite toda à disposição.

Fiz cara de decepcionado, pois estava com muita fome; ela me olhou, com alguma piedade, e disse:

- Fala com o chefe do plantão. Quem sabe ele... Se ele autorizar, eu...

Mostrou-me o chefe do plantão, um homem meio gordo, sentado atrás de uma  mesa pequena.  Caminhei até ele. Não pareceu irritado, mas repetiu o que  a mulher da cozinha tinha dito, no final, rubricou um pedaço de papel e me entregou:

- Vai lá. Seja rápido! Tá quase na hora de fechar o dormitório.

Minutos depois, eu estava diante de um prato abarrotado de comida. Não tive boa impressão. Apesar da fome, senti que não daria para comer. Olhei em volta e pude fazer o reconhecimento do local: as mesas eram de cimento armado, grandes, em número de dez, talvez, com bancos de igual feitio. Havia muita comida espalhada pelo chão e em cima das mesas e bancos. Muita sujeira. Três ou quatro gatos viçosos disputavam os restos, sobretudo o peixe que, naquele momento, percebi no prato. Fiquei parado um tempo, sem notar que a cozinheira me observava de longe. Resolvi começar a comer e notei que faltava alguma coisa. Fui até ela e reclamei que tinha se esquecido de me entregar os talheres.

- Talher?! Aqui se come é com a mão, meu filho, disse com certo sarcasmo.

Virei para voltar à mesa e ela me chamou oferecendo uma colher que, palavras dela, lhe pertencia, mas que eu não me acostumasse. Respirei, aliviado; estava livre de comer com as mãos. Voltei, sentei e passei a remexer a comida, que transbordava do prato: peixe cozido e arroz.  Depois de insistir durante alguns minutos, levantei, devolvi a colher e o prato à cozinheira. Não consegui comer. Agradeci a ela, que me olhou com cara enfezada, e fui até o chefe do plantão. Perguntei onde era o dormitório e ele apontou uma escada grande.

- Pode subir. Cuidado com as bolsas; tem muito “rato” lá em cima. Se é que você me entende...

Deu-me um papel rubricado, que retirou da gaveta da mesa, e me instruiu que o entregasse ao rapaz que estaria na porta do dormitório, alertou-me para o fato de que àquela hora eu não encontraria colchão ou cobertor e me ofereceu alguns jornais para que eu pudesse forrar o chão para me deitar.

Senti o peso das bolsas escada acima. Naquele momento, bateu arrependimento de não ter forçado a barra e comido, pelo menos, algumas colheradas, porém era preciso admitir que, naquela situação, a comida não descia. Diante da porta do dormitório, falei com um homem de mais ou menos uns quarenta anos, com cara de mau, que não tinha um dos braços, provavelmente perdido em algum acidente, e ele me informou o que eu já sabia, ou seja, que teria de dormir no chão. Em seguida, abriu a pesada porta e eu entrei. Estava escuro e não deu para ter uma ideia de como era o local, apenas algumas silhuetas, corpos deitados no pelo chão, e um cheiro tão desagradável que eu pensei que não pudesse suportar. Com um estrondoso barulho, a porta se fechou atrás de mim, tateando no escuro, escolhi um lugar vago para ficar, coloquei minhas bolsas do lado, espalhei o jornal, e me deitei. Pela primeira vez, naqueles dias, podia refletir sobre o que estava acontecendo comigo. Senti-me arrasado e chorei um choro de quem tinha medo do que pudesse lhe acontecer; pensei na minha casa em Ibiá, no interior de Minas Gerais: pai e mãe, já falecidos, os irmãos; a dor aumentou, eu estava sozinho. Por horas a fio recusei-me a dormir, como vinha acontecendo nas últimas noites passadas pelas ruas da cidade. Fiquei deitado, pensando, tentando achar uma explicação lógica para ter chegado àquele ponto, toda a minha vida passou, como num filme, pela minha cabeça: a infância, a adolescência, até aquele momento, e um gosto amargo de derrota tomou conta de mim, as lágrimas não cessavam de cair. Quis entender por que estava merecendo aquela provação e, então, veio à mente a oração “Pegadas na areia”: “Ele deve estar me carregando nos braços”, pensei na tentativa de me consolar. Passados alguns minutos, adormeci vencido pelo cansaço e pelo frio da madrugada.

 

 

 

                                                Capítulo 2


O PRIMEIRO DIA

Na manhã do que seria o meu primeiro dia no albergue João XXIII, nome daquela unidade da Fundação Leão XIII, fui despertado por uma barulheira infernal, abri os olhos, ainda sonolento, e pude ver que o porteiro do dormitório, com um pedaço de madeira na mão, batia contra as camas, que não eram do mesmo material, talvez ferro, o que provocava o tal barulho. Fiquei de pé quase sem perceber e, só então, senti que todo o meu corpo doía, resultado de todas as noites mal dormidas dos últimos dias. Os homens, em número de cem ou mais, estavam agitados, os que insistiam em permanecer deitados eram “visitados” pelo homem do porrete. Pela janela, acima de mim, pude verificar que ainda não era dia claro do lado de fora, pois estava escuro. Descobri, assim, que ali se acordava às cinco e meia da manhã todos os dias: horário em que todos eram obrigados a deixar o albergue e ir para a rua. Meio perdido, tentei acompanhar o ritmo da casa. Vi que uma fila se formara na saída do dormitório e que todos traziam nas mãos colchonetes e cobertores para devolver ao porteiro, pois os mesmos eram cedidos apenas durante a noite. Após a devolução, recebia-se o “papelzinho”, que devia ser entregue à cozinheira para ter direito ao café da manhã. Por isso, peguei minhas bolsas, depois de dar uma ajeitada no visual, e fui para a fila, que andava lentamente. Demorou até que chegasse a minha vez; o porteiro discutia muito com os albergados e esse era o motivo da lentidão: na verdade, ele retinha um documento de cada albergado, como exigência para o empréstimo do colchonete e do cobertor, e se enrolava todo na hora de devolvê-los aos donos; um pouco pela algazarra que todos faziam e, também, pelo menos me pareceu, porque tinha dificuldade de leitura; alguns perceberam e começaram  a chamá-lo de analfabeto, fazendo-o, mais irritado ainda, ameaçar deixar todos trancados o dia inteiro. A ameaça teve bom efeito; todos pareciam ter pressa de sair dali e acabaram por concordar em fazer silêncio; atitude que me deixou um tanto intrigado; quando cheguei ao refeitório, tudo se esclareceu.

- Encerrou o café! gritou a cozinheira já  minha conhecida.

Aproximei-me dela e tentei argumentar dizendo que era o meu primeiro dia e tal e coisa; não adiantou de nada.

- O café dos homens só é servido até às seis horas, disse, sem se dobrar, anunciando que era a vez do café das mulheres e, consequentemente, enxotando do refeitório todos os retardatários.

Conformado com minha sorte, eu fui procurar o Bagageiro, nome como era conhecido o  funcionário responsável por guardar os pertences dos albergados; precisava me livrar das bolsas. Nova fila. Ao chegar a minha vez, ele recusou-se a me atender alegando que eu teria de apresentar um papel que só o serviço social poderia me fornecer.  Mesmo depois de muita argumentação, fui obrigado a permanecer na instituição, esperando pela assistente social. Foi uma longa espera. Nesse tempo, pude ver como funcionava  o albergue: mulheres, crianças, e  um senhor idoso, notoriamente doente, cercado por pessoas que pareciam seus familiares, tomavam sol; alguns homens, talvez maridos, estavam ao lado de algumas mulheres, que traziam filhos pequenos no colo; duas mulheres, que pela conversa dava para perceber que não eram funcionárias e sim albergadas, cuidavam da limpeza do pátio. Um funcionário apareceu e, depois de elogiar o trabalho das duas voluntárias, se dirigiu aos homens para lembrá-los que não podiam mais estar ali: durante o dia, somente mulheres, crianças, idosos e doentes tinham autorização para permanecer no local. Os homens resistiram e ele os pôs para fora, com a ajuda de outros dois colegas. Imaginei que faria o mesmo comigo e me preparei para dar uma explicação; o funcionário passou por mim, muito irritado, sem me notar, bradando:

- É por isso que tão nessa vida! Só querem ficar na barra da saia das mulheres. No meu plantão, eu não permito. Homens têm de sair fora. Se vão trabalhar ou não, não é problema meu, mas aqui não ficam!

Ele sumiu, depois de cruzar a porta que dava acesso ao refeitório. Foi  quando uma mulher, com uma criança no colo, começou a falar que o marido era doente e que não podia trabalhar.

- Fazem isso com ele porque não ajudo na limpeza. Não sou puxa-saco! falou, calando de súbito, passando a andar, de um lado para o outro, balançando-se, nervosamente, como se ninasse a criança que, contudo, permanecia com os olhos bem abertos e com o dedo na boca.

Minutos depois, começaram a chegar alguns funcionários, entre eles, estava a assistente social do dia, uma senhora de meia-idade, que só me atendeu depois de um bom tempo de bate-papo com os colegas; falou com a moça do serviço médico, com o rapaz da identificação com o pessoal do SINE, havia um posto lá, com o pessoal da cozinha, enfim, falou com todos, sempre com um senhor gordo, de fala fanhosa a segui-la, como se estivesse tentando dizer-lhe alguma coisa importante. Entre os funcionários, o assunto era o novo governo, suas recentes medidas e, obviamente, os baixos salários do servidor público; pareceu-me ter ouvido alguém dizer que com a entrada do “homem” muita  cabeça rolaria: não foi difícil deduzir que o tal “homem” era recém- empossado governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola.

Quando a assistente social, finalmente, me atendeu, já eram quase onze horas da manhã: deu autorização para que eu usasse o bagageiro, depois de me fazer passar pela identificação  e pelo serviço-médico, aonde o médico nem chegou a me examinar, contentando-se como uma rápida olhada geral em mim, enquanto fazia algumas anotações numa ficha.

- Tá sentindo alguma coisa?

- Não, respondi.

- Então, pode ir.

Voltei à assistente social e, apesar de sua cara carrancuda, ela acabou demonstrando certa simpatia, oferecendo-me um “papelzinho” que valia como tíquete para almoçar.

- Aqui só é fornecido jantar e café da manhã, não oferecemos almoço para os homens, somente para as mulheres e crianças, além de alguns  senhores de idade e doentes; estou lhe oferecendo, dessa vez, porque ficou esperando desde cedo, é um caso excepcional, ela falou entregando-me o papel.

Enquanto ela falava, rememorei o jantar da noite anterior e quase agradeci a gentileza, dispensando o “papelzinho”, mas, naquele adiantado da hora, já zonzo de fome, não tive como recusar; era a chance de colocar alguma coisa no estômago, mesmo que fosse a pior comida do mundo, principalmente, levando em conta o fato de que não tinha um tostão no bolso, aquela era a minha única saída.

Guardei as bolsas no bagageiro e saí. Não tinha para onde ir e no estado em que estava, com as pernas bambas de fome, não conseguiria ir muito longe. Resolvi que caminharia até a Praça Coronel Assumpção, conhecida como Praça da Harmonia, a uma questão de metros. Lá, procurei um banco para sentar, uma vez que teria de esperar por quase duas horas, pois o almoço era servido depois das treze horas. Já havia passado por ali algumas vezes, porém, nunca tinha reparado a beleza de sua arquitetura: o prédio do Moinho Fluminense e o quinto Batalhão da Polícia Militar, além de outras construções, quase todas antigas, formam um conjunto arquitetônico apreciável. Apesar de a arquitetura ter atraído minha atenção, foi em outro detalhe que me ative: a praça em si era um tanto simples com seus bancos de madeira, os jardins semidestruídos, um coreto no centro, que servia de moradia para alguns mendigos, ou antes, albergados da Fundação Leão XIII que perdiam a hora da entrada; ao lado do coreto, um busto do coronel Assumpção, que dá nome ao local, e uma placa onde se podia tomar conhecimento de que o referido militar lutara na guerra do Paraguai, fazia ainda parte da praça, um parque infantil, com alguns brinquedos, quase todos destruídos, em frente ao albergue ficava o stand de tiro da polícia e uma espécie de clube de recreação; era toda tomada por mendigos, o que, me pareceu, inibia a presença ou passagem de moradores do bairro da Saúde e adjacências, que não conseguiam desfrutar de sua área de lazer, como pude comprovar já no primeiro momento. Identifiquei alguns rostos como sendo de pessoas que eu vira no albergue e não foi difícil deduzir que passavam o dia inteiro bebendo e achacando os poucos moradores do bairro que se aventuravam a passar por ali. Vez ou outra, mas com alguma regularidade, surgia alguém com uma garrafa de cachaça, que era logo consumida.

As horas passaram. Tendo chegado ali por volta de onze e meia, só deixei a praça às sete da noite, quando já se fazia escuro. Permaneci sentado, o dia inteiro, no mesmo banco, exceto na hora em que fui almoçar, dessa vez, talvez pela fome que eu sentia, consegui comer e achei que não estava ruim. O único problema foi a falta de talher; tive de esperar que um senhor terminasse de almoçar para que pudesse me emprestar o dele. O almoço me devolveu o ânimo, mas, por estar tarde, fui ficando por ali. Evitei pensar nos meus problemas, o que foi até fácil, uma vez que tudo o que me  cercava era novo, a cada momento era surpreendido por alguma coisa  ou alguém, como o senhor que sentou do meu lado – uns setenta anos, cabelos brancos, mas ainda forte, com uma perna visivelmente mais grossa que a outra, além de azulada e ferida, o que atraía moscas – e me contou que era aposentado, morava com uma sobrinha, que o maltratava e lhe tirava todo dinheiro de sua pensão, disse ainda que tinha um terreno em Santa Cruz, subúrbio do Rio de Janeiro, e no terreno um barraco que precisava de uns consertos, no entanto, ele, velho e doente, não tinha como fazer os consertos, se encontrasse um rapaz bom para  lhe ajudar daria moradia e comida, sem cobrar nada; só queria a companhia.

- Tô velho e doente! repetia.

Ao perceber que eu não me ofereceria como voluntário para salvá-lo das garras de sua cruel sobrinha, ele levantou, mancando muito e se equilibrando com uma espécie de bengala, e foi sentar-se noutro lugar. Assim que ele saiu, um rapaz se aproximou de mim para dizer que se tratava de um maluco, na verdade, um mendigo que vivia pela área e sempre que via alguém disposto a ouvi-lo contava a mesma história.

Deixei a praça, fui direto para a porta do albergue e lá entrei na fila que na noite anterior fiquei reparando, agora estava no meio deles, era um deles. Fui tomado por uma estranha sensação, um misto de vontade de sair dali misturado com o sentimento de que não tinha outra saída senão enfrentar a situação e tratar de me adaptar à realidade. Foi difícil controlar o ímpeto de voltar à praça; a possibilidade de que algum conhecido me visse naquela fila me deixou mais apavorado ainda. Somente aos poucos fui me acalmando, mesmo assim, procurei não conversar com as pessoas e mantive certo distanciamento de tudo; acreditava que agindo dessa maneira estaria um pouco protegido de tudo aquilo: estar ali significava o fim.

O porteiro, hoje um negro forte e de voz rouca – de métodos similares ao de seu colega da  primeira noite – começou a permitir a entrada do pessoal da fila. Passei por ele e mostrei a autorização que me dava direito a dormir por três dias, como faziam todos os outros, e ele fez um sinal qualquer no papel. Nova fila me esperava, dessa vez, para pegar o “papelzinho” para  a janta e a dormida. O jantar, arroz, feijão e legumes cozidos, até que desceu bem. O problema, mais uma vez, foi o talher. Levei muito tempo tomando coragem para me aproximar de alguém e pedir emprestado. Percebi que muitos tinham suas próprias técnicas para substituir o garfo ou a colher: uns comiam, literalmente, com as mãos, o gesto provocava um espetáculo um tanto grosseiro e nojento, devido a pouca higiene da cena; outros usavam  carteiras de identidade, documentos plastificados, e até cascas das frutas servidas na refeição, como laranjas, por exemplo.

Mais uma vez, eu estava de pé numa fila, essa era para entrar para o dormitório. Um homem de meia-idade, baixinho e gordo, ficou ao pé da escada recolhendo o “papelzinho”, o mesmo usado para o jantar, que eu havia entregado à cozinheira e ela me devolvera com um pequeno corte. A fila seguia passando por um rapaz magro de uns trinta e poucos anos que  estava na porta do dormitório distribuindo colchonetes e cobertores. Pensei que, a exemplo do que eu vira pela manhã, exigiria algum documento, porém ele me entregou um colchonete e um cobertor, ambos muito sujos e malcheirosos, dizendo que confiava na devolução pela manhã, para ele, a devolução dependia da consciência de cada um; se os colchonetes e cobertores desaparecessem, os prejudicados seríamos nós. Uma vez dentro do dormitório, procurei um local para dormir. As camas, que eram poucas, já estavam todas ocupadas pelos que chegaram primeiro. O jeito foi me contentar  em dormir no chão, como na noite anterior; dessa vez, fui alertado para a existência de umas tábuas que eram usadas para colocar o colchonete em cima e com isso livrar-se da umidade do piso de cimento. Ajeitei tudo como deu e sentei. Ainda era cedo e não estava com sono, para matar o tempo, passei a reparar o movimento de pessoas à minha frente: gente de todos os tipos, sotaques, cores, brasileiros e estrangeiros, sobretudo latino-americanos, e percebia-se que muitos já se conheciam, alguns passavam para o chuveiro, que ficava do lado de fora e voltavam com os corpos molhados, fazendo crer que ali havia a prática do banho, pelo menos, para uma minoria. Escolhi dormir perto da porta, julgando que, em caso de tumulto, estar próximo à saída seria melhor. Depois de umas duas horas, a luz se apagou pegando muitos de surpresa, pois a maioria ainda conversava em grupos. Houve corre-corre, muitos falavam alto, procurando suas camas, e isso gerou uma grande agitação. Vencido  pelo cansaço, adormeci logo, sem perceber que, a partir daquele dia, dava-se início a uma rotina que se repetiria por muito tempo.

 

 

 

Capítulo 3

 

A PRIMEIRA LIÇÃO

        

Nos dois dias que se seguiram, travei uma verdadeira luta contra o tempo na esperança de arrumar um emprego para sair do albergue; não conseguia conceber a ideia de permanecer naquele lugar por muito tempo. Por isso, desde que acordava de manhã até o final da tarde não tinha descanso: saía de uma agência de emprego para outra preenchendo fichas, fazendo entrevistas ou correndo os anúncios de jornal, muitas vezes, na companhia de Geraldo, um pernambucano de Olinda, de uns vinte e poucos anos, sotaque bastante carregado, que fazia questão de apregoar a todos sua opção sexual, seu mantra era: eu sou “baitôlo”, sabe? Dono de uma fala grossa, e de gestos abrutalhados, era uma figura engraçada. Único companheiro naqueles primeiros dias, o conheci na fila de entrada do albergue, estava com algum dinheiro e, às vezes, me pagava um lanche; não conhecia a cidade, estava fazendo sua primeira viagem ao Rio de Janeiro, vindo de São Paulo, onde dizia ter morado por dois anos, e pediu que eu o levasse a alguns endereços, então, pude conhecer seu lado extrovertido e alegre: dava calote nos ônibus, pedia comida nos restaurantes e bares e aceitou Jesus num culto realizado por evangélicos na Central do Brasil, em troca de algum dinheiro que o Pastor recolheu entre os fiéis, depois que deu um depoimento dizendo-se um crente no desvio, disposto a se regenerar, dependendo, para isso, apenas da colaboração de todos. A atitude me deixou bastante envergonhado, mas, de certa forma, gostei, pois ganhei um lanche logo depois, numa lanchonete na própria Central do Brasil. Num final de tarde, andando pelo Aterro do Flamengo, após atender a alguns anúncios de emprego, resolvemos sentar debaixo de uma árvore para descansar. Próximo à árvore havia um grande despacho feito com balas, doces, bombons e brinquedos. Olhei para aquilo, temeroso, e disse que, por uma questão de respeito, não deveríamos mexer. Ele não me deu ouvidos e, sem a menor cerimônia, pôs-se a devorar vorazmente tudo o que via pela frente, numa disputa sem trégua com as formigas e outros insetos; vez ou outra me oferecia algum doce que, apesar da fome, não me atrevi a sequer tocar. Naquele dia, voltamos ao albergue sem conseguir nada.

No segundo dia, Geraldo comprou um jornal e encontrei nele alguns anúncios de emprego que batiam com a minha experiência, separei-os, tratei de traçar  um roteiro, e verifiquei que ele pretendia fazer um caminho completamente diferente; decidimos, então, que cada um sairia para o seu lado. Minha caminhada começou pelo bairro do Santo Cristo, se estendeu até a Rua República do Líbano, na Saara, no centro da cidade, e lá pelas onze horas cheguei, caminhando, em Botafogo para atender a um anúncio de uma revendedora de carros que pedia um auxiliar de escritório. Um senhor de meia-idade me atendeu e foi logo perguntando se eu tinha ido pelo anúncio. Respondi que sim e ele continuou:

- Do Dia ou do Globo?

- Do Dia, respondi, faz diferença?

- Só para saber, ele respondeu após pegar minha carteira profissional  e examinar, ora o documento, ora a mim, propriamente, momentos em que olhava por cima dos óculos, voltava a abaixar os olhos; finalmente, falou: Vamos fazer um teste.

Apesar de nervoso, sentei e mostrei habilidade executando tudo o que ele pedia.

- Nada mal, comentou entre dentes, entusiasmado claramente com o meu desembaraço, depois, ele me encarou: Tem todos os documentos?

- Sim, respondi me apressando em mostrá-los.

- O senhor teria algum problema em começar na segunda-feira? ele perguntou depois me de olhar demoradamente.

- Não! Até hoje mesmo, se o senhor quiser.

Passados alguns minutos de conversa, ficou acertado que eu deveria mesmo começar na segunda-feira; era o tempo que, segundo o entrevistador, eu necessitaria para reunir os documentos requisitados. Fui invadido por um sentimento confuso, misto de felicidade, alegria, vitória, vontade de chorar, gritar: eu tinha conseguido! Poderia sair do albergue, aquele lugar sujo e deprimente. O salário não era ruim, dois mínimos para começar, era tudo o que eu precisava para sair da situação desesperadora em que me encontrava. Já estava agradecendo a Deus, em pensamento, quando ele perguntou:

- Onde mora?

Fiquei calado por algum tempo; não esperava aquela pergunta. Ele repetiu, de forma mais insistente; a informação era importante por causa do vale-transporte.

- Se você morar muito longe...

Abaixei a cabeça e pensei um pouco: eu poderia inventar uma história e fornecer um endereço qualquer, por fim, eu e o encarei dizendo com a voz embargada:

- Eu... bem... estou no albergue da Fundação Leão XIII, na Praça da Harmonia, na Saúde. É que, como o senhor sabe, estou desempregado há algum tempo, sou de Minas, não tenho parentes na cidade, acabei sem ter onde morar e aí...

Fui estimulado a contar toda a minha história, e cheguei a acreditar que aquela fosse a melhor saída, visto que, durante o relato, o homem se mostrava compreensivo em seus comentários e apartes. Quando cheguei ao final, tive a sensação de que iria chorar.

- Infelizmente, não poderei admiti-lo; a firma exige comprovante de residência como parte dos documentos e, pelo jeito, o senhor não terá como conseguir um, não é mesmo? Essas casas, albergues, são abrigos provisórios. Sinto muito, senhor Julio, ele falou calmamente.

Não sei como consegui sair dali, porém, em poucos minutos, estava andando desatinadamente pelas ruas do bairro, procurando uma explicação para o que acabara de acontecer; além de tudo o que estava passando, tinha de enfrentar o preconceito por estar naquela situação. Andando a esmo, acabei chegando às proximidades da Avenida Oswaldo Cruz, no Flamengo, onde acontecia uma feira, estava no final: legumes, frutas, verduras, restos de peixes, tinha de tudo caído pelo chão; movido pela fome, que o sol  quente só fazia aumentar, passei a andar entre os detritos para ver se encontrava algo em condições de comer, peguei algumas bananas, laranjas, um mamão, tudo muito amassado; abaixava e calmamente apanhava tudo no chão, sem o menor constrangimento, em nenhum momento, pensava no que estava fazendo. Perto de mim, um feirante, de sotaque português, tentava espantar alguns garotos que circulavam em torno de sua banca.

- Saiam daqui! Ainda não está na hora de xepeiro, gritava ele.

Já abastecido, atravessei a rua e ganhei o Aterro, escolhi a sombra de uma árvore e me pus a comer tudo aquilo com uma fúria animalesca, sem me preocupar com o estado das frutas ou mesmo com a higiene: precisava matar minha fome e era isso o que importava.

Mais tarde, quando chequei à Praça da Harmonia, contei, numa roda de albergados, o que havia acontecido, e todos foram unânimes em dizer que eu tinha cometido uma grande burrice: se eu quisesse arrumar emprego, ou mesmo ter um convívio normal com as outras pessoas, nunca deveria mencionar que era um albergado da Fundação Leão XIII.

- Todo mundo sabe que Fundação Leão XIII é lugar de mendigo, afirmou um.

- Ninguém vai dar emprego a alguém que “mora” aqui, avisou o outro.

A conversa ainda rendeu por alguns minutos. Permaneci calado, apenas ouvia o que todos, do alto de suas experiências de vida na rua, tinham para dizer. Naquele momento, cheguei à conclusão de que ainda tinha muito a aprender sobre o mundo hostil que me rodeava.

Com o grito do porteiro, tratamos de nos ajeitar na fila, e, logo a seguir, ele começou a permitir a nossa entrada. Dentro do albergue, o plantonista, ao me dar o “papelzinho” para jantar, ficou com a minha autorização e disse que eu deveria procurar o serviço social no outro dia. Entendi que ele agiu daquela maneira devido ao fato de que a autorização era para três dias, aquele era o terceiro e, portanto, o último da minha hospedagem. Quando cheguei ao refeitório, havia uma confusão formada: um albergado falou  mal da comida e, por isso, ofendeu os brios das cozinheiras. Os plantonistas, além do soldado da polícia militar, ostensivamente armado, sem a presença do qual o jantar não era servido, foram chamados. A janta foi interrompida, provocando uma inquietação geral. O responsável pela confusão se escondeu no meio dos outros, quando viu a situação ficar ruim para ele. Isso fez com que os plantonistas e o policial andassem indagando à sua procura. O policial tomou a palavra e fez ameaças dizendo que, se o culpado não aparecesse, a sopa não seria servida. Diante da audiência silenciosa, fez um elogio ao governo que, segundo suas palavras, não  tinha obrigação de alimentar vagabundo; aquela sopa estava além do que merecíamos, portanto, deveríamos agradecer e não falar mal. Terminado o discurso, como ninguém se manifestou, ele resolveu chamar as cozinheiras ofendidas para que elas reconhecessem o agressor, o que provocou grande apreensão; elas andaram pelo refeitório, repetindo a ação de seus colegas, de repente, uma delas falou apontando na minha direção:

- É ele!

Tive a impressão de que era para mim que ela estava apontando e senti o chão faltar debaixo dos meus pés. Os plantonistas e o policial caminharam na minha direção: “O que essa cozinheira maluca tá fazendo?” Não sabia o que pensar. Já estava pronto para esboçar alguma reação, quando vi um rapaz magro, branco, e aparentando uns trinta anos, encolhido do meu lado.

- Foi aquele engraçadinho ali, ela completou.

O rapaz tentou se explicar, mas não teve jeito; foi arrastado dali até o portão, de onde foi empurrado para o meio da rua. Os plantonistas e o policial vociferavam palavras que não deu para escutar direito, mas que não foi difícil de imaginar. Logo a seguir, retornaram ao refeitório, onde reinava o mais absoluto silêncio. Um dos plantonistas passou a falar, nervosamente, nos alertando de que não estava ali para aturar insubordinação e desaforo de mendigos vagabundos; e, bastante alterado, parecia esperar que alguém tivesse algum tipo de reação para que pudesse colocar para fora toda sua fúria: ninguém se manifestou. Minutos depois, a sopa voltou a ser servida. Timidamente, o burburinho e a algazarra, comuns da hora do jantar, foram retornando. Pouco depois, nada fazia lembrar o que tinha acabado de acontecer; como todos os outros, eu estava faminto e preocupado apenas em conseguir tomar aquela sopa quente e rala, porém, muito bem-vinda.

No dormitório, quando as luzes finalmente se apagaram, tentei dormir, e não consegui. Lá pelas tantas, percebi uma grande movimentação: vultos passavam de um lado para o outro, uns solitários, outros, em grupos, cochichavam entre si. Com algum esforço, notei que eram os travestis que vira na entrada; eram em número considerável e, agora, falavam alto.

- Oxente! Será que não tem macho neste Rio de Janeiro? gritou uma voz com sotaque nordestino.

Abri os olhos e vi que o Geraldo estava entre os travestis. Aquela movimentação durou algum tempo. Houve gritos, gracejos e trocas de insultos. Alguém se dirigiu à porta de entrada do dormitório e gritou pelo plantonista, as  luzes se acenderam e ele apareceu com um porrete na mão, fez algumas ameaças e prometeu expulsar os baderneiros, a essa altura, impossíveis de serem distinguidos pelo silêncio que se fez, repentinamente, tão logo as luzes se acenderam. Passado um tempo, o homem foi embora. Novamente, as luzes se apagaram e a movimentação recomeçou. Da minha parte, não consegui dormir, dominado por ideias um tanto derrotistas.

 

 

 

Capítulo 4

                                     

MINHA HISTÓRIA

         

O quarto dia no albergue foi, sem dúvida, decisivo e marcou profundamente minha passagem pela instituição, revelando um mundo do qual eu viria a fazer parte integrante, levado por uma força inexplicável; mesmo com tudo o que vinha me acontecendo nos últimos tempos, nada se compararia àquilo, pois conheceria toda a miséria humana, uma miséria que eu não sabia se seria capaz de suportar.

Depois de dormir entregue a pensamentos nada otimistas, acordei sem nenhuma esperança de dias melhores; embora tentasse me convencer do contrário, tinha perdido a convicção inicial e já não acreditava que sairia daquela situação assim tão facilmente. Para piorar as coisas, estava novamente sem um lugar para ficar; os três dias de estadia, que me foram concedidos quando cheguei, expiraram, entretanto, não sabia se valeria a pena continuar “hospedado” ali no meio daqueles farrapos humanos, enfrentando as afrontas e humilhações que  eram impostas a todos pelos funcionários e pela própria situação em si; por outro lado, não tinha escolha: era ficar no albergue ou voltar para a rua. Apesar de todo o meu dilema, esse era um assunto para depois; antes de tomar qualquer decisão, eu precisava entrar na fila do café; por estar sem dinheiro, eu não podia dispensar.

O refeitório estava lotado e, por um momento, fiquei assistindo a tudo meio de lado: as duas cozinheiras estavam atrás de dois grandes caldeirões de alumínio, num estava o café e no outro, o pão. Achei esquisito ver uma tirar o café com uma concha dessas usadas para sopa e, com ela suspensa, gritar para  que o albergado  posicionasse melhor o copo – a cena não era nada diferente a da hora sopa, à noite. –, em seguida, a outra cozinheira pegava o pão com a mão e o entregava ao albergado. Era tudo muito grosseiro. Pensei em desistir; tive a impressão de que a mão da mulher era suja. O bom-senso lembrou-me que eu não estava em condições de fazer qualquer tipo de conjectura, afinal, estava faminto e precisava comer, e era isso o que contava; o resto, era frescura de um cara que ainda não estava completamente consciente de sua real situação. Levado por esse pensamento, eu entrei na fila, até porque, não restava muito tempo; dali a pouco, uma das cozinheiras gritaria que o café estava encerrado, como vi acontecer nos dias anteriores. Permaneci na fila até que chegou a minha vez: trabalho perdido; a cozinheira, estupidamente, avisou-me que não forneciam copos; e, sem um copo, era impossível tomar o café. Segundo ela falava, aos berros, todos os copos que existiam ali sumiram, e eu, assustado, não sabia o que fazer. A situação deixava claro o quanto os funcionários da Fundação Leão XIII eram estúpidos e impacientes com os albergados; em geral, pareciam agir de combinação, dando a entender que aquele tipo de procedimento era a norma da casa. Saí da fila e parti para ver se conseguia um copo emprestado; tinha a ideia fixa de que precisava  comer alguma coisa, à minha frente tinha um longo dia e talvez aquela fosse a única chance que eu teria de colocar alguma coisa no estômago. Foi difícil e só  depois de pedir para e um e outro é que acabei conseguindo: não era um copo e sim uma lata de conserva vazia, talvez extrato de tomate ou salsicha. Quase todos usavam lata, ou garrafa de água mineral cortada: copos improvisados, que os donos se negavam a emprestar, como se fossem de cristal e pudessem se quebrar. Além da negativa, muitos sugeriam que eu deveria fazer como todos eles, ou seja, pegar uma lata, a rua estava cheia delas, e transformá-la num copo, pois eu não era melhor do que eles, ou era? Dessa forma, me davam mais uma grande lição: um albergado precisava ser um tanto precavido; por ser obrigado a enfrentar muitas situações inesperadas durante todo o tempo, tinha de lançar mão de alguns expedientes vitais para a sobrevivência na “selva”, por esse motivo, todos carregavam consigo uma mochila, bolsa de mão ou mesmo sacolas de supermercado contendo pequenos objetos de uso diário, os copos para o café e a água e as colheres para a sopa estavam entre os itens indispensáveis; muitos traziam até pratos, para o caso de conseguir comida na rua, na mochila deveria conter também uma muda de roupa, pois nunca se sabia o que poderia acontecer e o bagageiro tinha hora certa para funcionar: abria durante, mais ou menos, uma hora, duas vezes por dia, às seis da manhã e às cinco horas da tarde, no restante do dia ficava fechado; outros objetos, como pente, escova de dente, espelho e barbeador fechavam a lista de prioridades; não devia se esquecer de guardá-los bem, os roubos eram comuns, principalmente, de copos, pratos e talhares, objetos bastante visados; fato que viria a se comprovar com as muitas brigas que presenciei causadas por furtos dessa natureza, geralmente, os roubos aconteciam no refeitório; nem as presenças dos plantonistas e do policial intimidavam.

Quanto ao café, minha salvação, mais uma vez, foi o Geraldo, que conseguiu um copo emprestado com um colega dele, uma vez que já estava completamente enturmado. Aproximei da cozinheira e ela, enquanto me servia o café, avisou que não poderia repetir, e a que servia o pão, disse a mesma coisa:

- Um pão para cada um; ainda falta muita gente.

Afastei-me, sem dizer nada, e fui para um canto. Não se tratava realmente de café a água marrom que estava no copo; apenas estava muito quente, quanto ao gosto, não dava para definir; o pão, duro e velho,  cheirava a mofo e o gosto não era nada bom. Comi assim mesmo; não sabia o que viria depois.

Geraldo despediu-se de mim, com sua habitual alegria, e foi à luta; continuava otimista quanto ao seu futuro, e conseguir um emprego era uma questão de dias, afirmava ele. Quando ele saiu lembrei que tinha de decidir o meu destino. Na mente, apenas a certeza de que na rua não dava para ficar; no albergue, eu, de certa forma, estaria protegido. Decidi que falaria com a assistente social e tentaria conseguir mais uns dias; o plantonista tinha me avisado que sem a autorização eu não entraria no albergue de jeito nenhum. Fato que eu já havia presenciado nas noites anteriores, pois sempre tinha alguém tentando explicar aos porteiros que não tinha tido tempo de falar com assistente social por esse ou aquele motivo; o que de nada adiantava, porque todos eram irredutíveis: sem a autorização não entravam e a saída era dormir na rua.

Tudo transcorreu como no primeiro dia: as mesmas cenas, as mesmas pessoas, tudo igual. Dessa vez, o funcionário que veio expulsar os homens, que insistiam em permanecer no albergue, tentou me colocar para fora também: expliquei a razão da minha presença ali e ele concordou que eu ficasse. Pela primeira vez, comecei a demonstrar certa impaciência, foi difícil esperar tanto tempo; o cigarro tinha acabado e já fumava na base do “se me dão”. Sem nenhuma timidez, eu abordava um e  outro e pedia, repetindo a mesma atitude que achara estranha no primeiro dia. Tive a falta de sorte de pedir cigarros a um funcionário e ele reagiu muito mal. Descobri com isso que, pelo fato de não usarem uniforme, era fácil confundir um funcionário com um albergado. A única coisa que os diferenciava era a arrogância e a tendência aos maus-tratos. Quando via alguém maltratando uma pessoa e ela, estranhamente, não apresentar nenhum tipo de reação, concluía que se tratava de um funcionário ou funcionária. No mais, não havia grande diferença; eles eram, salvo algumas exceções, negros ou mulatos, com idades por volta dos quarenta anos, de aparências muito simples, e eram um tanto desajeitados no trato com os albergados, muitos eram conhecidos por sua truculência e, por isso, temidos; a confusão na distinção entre funcionários e albergados aumentava devido à existência de funcionários que, na verdade, eram também albergados.

Fui atendido por volta de dez horas. Quando entrei na sala da assistente social, ela foi logo perguntando se eu tinha encontrado trabalho, e não esperou a resposta: avisou que, se eu não conseguisse alguma coisa, não teria meu prazo de permanência no albergue renovado. Depois, fez um longo discurso, que eu não fiz questão de prestar atenção, pois, enquanto ela falava, fiquei reparando que a sala do serviço social era grande, bastante espaçosa: umas quatro ou cinco mesas, dessas de escritório, e alguns armários compunham o mobiliário antigo, empoeirado e maltratado; as mesas vazias faziam crer que, pela manhã, a assistente social, de nome Renê, como eu viria saber, trabalhava sozinha. Voltei a prestar atenção no que ela dizia no momento em que me apresentava um papel xerocado, quadrado, os dias do mês datilografados nas bordas e, no centro, um espaço para o nome e o número do portador: era a autorização. Eu poderia ficar no albergue mais alguns dias, tempo, segundo ela, suficiente para eu resolver o meu problema de emprego e moradia. Aconselhou-me a  cuidar bem do papel, que ela chamava de cartão de identificação: tudo o que eu fizesse ali teria de apresentá-lo, pois era a minha identidade dentro do albergue. O atendimento chegou ao fim com ela me avisando que havia uma agência do SINE dentro albergue, com muitas vagas em aberto. Comentei que minha função era na área de contabilidade e ela disse que as vagas eram para serviço braçal e, quando muito, para serviços gerais.

- É para esse tipo de função que procuram aqui, completou.

Se eu quisesse trabalhar, ela disse, não poderia escolher, deveria ir até a agência e aceitar o que me oferecessem; fiz o que ela sugeriu. Na sala do SINE, o funcionário a desmentiu dizendo que não tinha nenhuma vaga para homens, apenas para empregadas domésticas. Saí dali e fui para a praça. Nessa hora, o sol queimava sem piedade, a fome já dava sinais e eu estava bastante desanimado. A decepção com o emprego no dia anterior ainda era forte e fez com que apagasse todo o meu otimismo. Sentei num banco para decidir o que fazer, uma vez que não poderia sair a esmo pela cidade, precisava traçar um roteiro: aonde ir e que caminho tomar.

Com o cartão do albergue ainda nas mãos, tentava decifrar algumas coisas que estavam escritas nele; além do meu nome e do prazo de validade, tinha um número, não me recordo que número era esse; lembro-me que tentei descobri seu significado e conjecturei que poderia ser aleatório, mas também poderia significar a quantidade de albergados, número de atendimentos feitos pela instituição ao longo do tempo, uma classificação interna ou qualquer coisa do gênero. Desisti da empreitada, concluindo que isso não tinha a menor importância, aliás, naquele momento, quase nada importava.

Quatorze dias – esse foi o tempo que a assistente social me deu – era tempo demais, pensava comigo. Cheguei a dizer para ela que não precisava de tanto tempo; eu arrumaria um emprego em poucos dias: “Nunca fui vagabundo”, pensava. Só estava ali porque não tinha recebido os dois últimos salários no emprego de assistente de produção num programa da  Rádio Continental, o programa de variedades, “Mulheres em Ação”, apresentado por Deise Borges e ia ao ar das sete às nove horas da manhã, de segunda a sexta-feira, e vinha da TV Corcovado, onde foi apresentado das três às cinco da tarde, de segunda a sexta-feira, até que tinha audiência, mas, por ocasião das eleições, entrevistou alguns candidatos a deputados estaduais pelo PDT, como Cidinha Campos, José Louzeiro e Regina Gordilho e isso trouxe problemas; o assunto da entrevista foi o trabalho que o governador Moreira Franco vinha desenvolvendo no estado do Rio de Janeiro e, como opositores do governo, os candidatos não pouparam críticas. Apesar de o programa ter tido alguma audiência, a TV Corcovado, por ter toda a sua programação patrocinada pela LOTERJ, o tirou do ar, provavelmente, temendo perder o patrocínio. Na Rádio Continental, a repercussão não foi muito boa e não conseguiu patrocinadores. Somando tudo isso ao caráter pouco confiável da apresentadora Deise Borges era por esse motivo que eu estava ali. O programa, dentre outras coisas, em sua temporada no rádio, tinha uma parte dedicada ao acolhimento de pessoas necessitadas e desabrigadas, que eram encaminhadas às instituições do governo. Deise, que tinha a intenção de se candidatar a algum cargo público, usava isso como forma de se autopromover. Fazia parte do meu trabalho na produção ligar para instituições como a Fundação Leão XIII para tentar conseguir ajuda para algum desabrigado ou para famílias que procuravam a produção, e jamais imaginei que um dia estaria na mesma condição; depois que o programa saiu do ar, usei todos os meios possíveis para receber os dois meses de salário que Deise me devia, mas não consegui: ela alegou que estava falida. Sem saída, fui obrigado a deixar a casa onde morava em Mesquita, nesse caso,  dizer que fui obrigado é força de expressão; pela dona da casa, a Léla, talvez eu ainda estivesse morando lá até hoje, mas não era justo continuar morando sem pagar nada, além do mais, ela era viúva, mãe de dois filhos pequenos e precisava do dinheiro do aluguel do quarto para ajudar no orçamento da casa. Cheguei a ela através do Paulo, seu “irmão de santo”, um mineiro de Belo Horizonte; dividi um apartamento, em Botafogo, com ele e seu companheiro, Jaílson, logo que cheguei ao Rio, em julho de 1989 e, com eles, me mudei para Juscelino, Nova Iguaçu. Quando resolveram voltar para Minas, depois que o Paulo perdeu o emprego de cozinheiro num conhecido restaurante da cidade, e eu não tive condições de ficar com o apartamento, ele convenceu a “irmã” a me alugar um quarto em sua casa. O fato de estar vivendo praticamente de favor não me agradava e, mesmo sabendo que  a minha atitude  seria classificada como arrogante e orgulhosa, decidi deixar a casa para enfrentar o mundo com a cara e a coragem, porém, não poderia imaginar no que daria minha atitude. Quando, já na rua, lembrei-me da existência da Fundação Leão XIII, foi muito triste e irônico, portanto, só dava para me imaginar passando ali mais quatro ou cinco dias, no máximo, quatorze eram impensáveis, inconcebíveis mesmo; logo, eu arrumaria um emprego, que teria de ser numa firma, emprego formal, com todos os direitos assegurados; era por falta de uma carteira-assinada que eu estava com tanta dificuldade para receber de Deise: nosso trato era de boca, trabalho informal, sem nenhuma garantia. Todavia, para um arrumar um emprego, era preciso que eu levantasse o traseiro daquele banco e saísse em campo. No entanto, se o meu pensamento exigia uma reação, o corpo não, e, por mais que eu tentasse, não conseguia arredar o pé daquele lugar. Passei o dia inteiro nesse embate: a mente queria uma coisa e o corpo outra. Quando dei por mim, já eram sete horas da noite e tinha ficado o dia inteiro na praça, envolvido com seu movimento. Vim a dar por mim, ao entrar na fila, na porta do albergue e, como qualquer outro faminto, eu esperava pela sopa; a fome tem um desespero, uma urgência que jamais pensei que tivesse: agora entendia aqueles olhares desesperados, fixos no portão fechado. Apesar de estar zonzo e com as pernas bambas, não deixava de reparar tudo à minha volta e buscava desenhar um passado para cada um daqueles personagens à minha frente: Vítor Hugo não os imaginou; eram miseráveis reais. Ironicamente, cheguei à minha própria história: nasci, numa família de classe média pobre, na cidade de Ibiá, no interior de Minas Gerais. Meu pai, Adão Moreira, era telegrafista da Rede Ferroviária; minha mãe, Maria Aparecida Moreira, além de dona-de-casa, era costureira, tiveram dez filhos: Adãozinho, Luís Antônio, Carlos Roberto, Nely Eva, Márcia, Telma, Eloisa, Dimas Eduardo e Paulo Rogério e eu, Julio, que sou o quinto filho. Morávamos numa casa grande, com um quintal imenso e posso afirmar que tive uma infância feliz, embora os pais fossem muito severos, principalmente minha mãe, havia fartura na mesa, não faltava nada, e preocupação com a educação e a saúde dos filhos, ao mesmo tempo em que nos alertavam para a necessidade de cada um ganhar seu próprio dinheiro. Comecei a trabalhar cedo: trabalho braçal, nas lavouras e fazendas; com a chegada dos “japoneses” à cidade, essa era a única forma para um pré-adolescente pobre, como eu, ganhar algum dinheiro. Pouco depois, fui trabalhar como balconista numa livraria, a Joia Papelaria, de propriedade da Maria Conceição de Ávila, a Sãozinha, a única papelaria da cidade, o que dava certo status e representou, para mim, uma espécie de “subida” na vida; não tinha mais de levantar de madrugada, viajar na carroceria daqueles caminhões, comer comida fria ou azeda, enfrentar sol, chuva e animais ferozes, passei a trabalhar limpo e bem arrumado. Foi por essa época que aprofundei meus conhecimentos: aluno do segundo grau, eu tinha sempre os livros e informações em primeira mão, sem contar que a livraria era também papelaria, loja de presentes e vendia todo tipo de revistas e era um ponto de grande movimentação na cidade.

Minha inclinação inicial foi para o sacerdócio e cheguei a tomar a decisão de me tornar padre, mas a vocação para a arte de representar falou mais alto, uma vez que atuava como ator amador na cidade, mais precisamente, no Grupo Teatral Renascentista Ibiaense, conhecido pelas iniciais G.T.R.I., formado, em sua maioria, por alunos do Colégio São José como o Wilmar Silva, o Roberto Natalino, a Leila Xavier, o José Wilson Andrade, dentre outros. O colégio São José era um colégio de freiras e foi onde fiz o curso de técnico em contabilidade, logo depois, já decidido a ser ator profissional, resolvi abandonar  o terceiro período do curso de Letras, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Patrocínio e me mudei para Belo Horizonte, para fazer um curso de teatro no NET (Núcleo de Estudos Teatrais), onde conheci muita gente boa, e dei seguimento à carreira. Após quatro anos na cidade e de me profissionalizar como ator, eu resolvi sair do emprego e me mudei para o Rio de Janeiro, grande sonho da minha vida. Uma vez no Rio, tentei conseguir alguma chance na Rede Globo e na Rede Manchete, na época com um núcleo de dramaturgia atuante, mas nada consegui. Guardo dessa época uma lição que recebi, dada pelo ator José Wilker, pois costumava ir para a porta da TV Globo, no Jardim Botânico, na esperança de conseguir alguma coisa, normalmente, ficava ali perto do bar Século XX, um dia, vi o ator tomando café no bar e tive a ideia de me aproximar e conversar com ele; pelo que me constava, ele era o diretor de dramaturgia da Manchete e eu vi ali a chance de conseguir, pelo menos, um teste. Timidamente, toquei no assunto e ele foi incisivo ao dizer que não estava mais na emissora e que, como eu, também estava pedindo emprego, ou seja, estávamos no mesmo barco. Diante dessa realidade, o jeito foi tentar voltar para o mercado de trabalho convencional, o que não estava nada fácil; o recentemente empossado presidente da república, Fernando Collor de Mello,  com suas medidas catastróficas, só fez piorar tudo, um anúncio na televisão me levou até Deise Borges e através dela eu estava ali.

Tentei desviar o pensamento, esquecer que um dia tive casa, família, comida farta na mesa, amigos e sonhos; precisava evitar me fragilizar, nada de autopiedade, não tinha de ficar querendo me transformar numa vítima do sistema, embora tivesse alguma consciência disso, a indiferença, naquele momento, era o remédio. Alguém tentou furar a fila e uma confusão teve início, de repente, me vi no meio dela, brigando pelo meu lugar, como qualquer outro, defendendo o direito de ser um dos primeiros a entrar; a fila começava cedo, por volta das cinco horas, e todos sabiam que deixar para entrar nela tarde significava ter de esperar mais tempo pela sopa; por volta de sete horas, ela se tornava muito grande e confusa.

O portão abriu e o porteiro apareceu dando a entender que estava na hora de entrar. O mesmo embate de sempre entre ele e os albergados: autorizações que não valiam mais, bêbados barrados etc. Lá dentro, o plantonista fez o primeiro risco no meu cartão e rubricou do lado; no refeitório, a sopa não foi suficiente para aplacar toda a fome que eu sentia, o pão, servido junto, ajudou um pouco. Subi para o dormitório e fui dormir, procurando me convencer, sem muito sucesso, de que o amanhã viria mostrando a aurora de um novo dia e que tudo aquilo poderia mudar.

 


 

Capítulo 5

 

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA

OU

PERDIDO NA PRAÇA

 

Dia após dia, eu seguia a mesma rotina. Já não sabia há quanto tempo estava no albergue. Para ser exato, apenas o cartão de identificação me dava certa noção de tempo, pois, pelos riscos que o plantonista fazia nele, pude verificar que a autorização de quatorze dias que a assistente social tinha me concedido estava quase no fim. Durante dias, a praça se transformara na minha casa, meu refúgio, o lugar onde nada me era negado nem exigido, onde ninguém tinha pena ou preconceito de mim; era tratado de igual para igual, e isso me fazia bem. Tão logo amanhecia o dia, ia para lá, ficava sentado por ali conversando com um e outro, mas, sobretudo, remoendo meus problemas. Logo no primeiro dia, pude sentir que a praça, aparentemente inofensiva, exercia uma força poderosa sobre as pessoas, era preciso ser muito forte, ter muita força de vontade para não se deixar seduzir, pois ela funcionava como uma extensão do albergue, principalmente para os homens. O movimento começava às seis da manhã, quando era intenso, e só terminava na hora da entrada, à noite.

Pela manhã, os que tinham algum dinheiro iam tomar café na padaria, que ficava em frente; os que não tinham dinheiro, esse era o meu caso, sentavam pelos bancos e ficavam esperando que aparecesse alguma coisa. Nessa hora, a maior procura era por cigarro, biscoito, frutas e pão também eram bem-vindos, se alguém quisesse comer ou fumar tranquilamente, que não ficasse na praça. Aos poucos, o local ia se esvaziando; aqueles que tinham alguma coisa para fazer, iam saindo, normalmente, eles iam procurar emprego ou mesmo vagabundear pela cidade, alguns iam tirar segundas vias de documentos, que eram perdidos com frequência; a falta dificultava ainda mais a procura por trabalho de carteira-assinada; lá pelas nove horas, restavam apenas os frequentadores habituais: os mendigos  e as mulheres albergadas, que vinham tomar sol com os seus filhos pequenos.

Em pouco tempo, me fiz conhecido de todos; após fazer o gênero caladão por algum tempo, acabei cedendo; sempre aparecia alguém para puxar papo, começava com uma conversa tímida e daí a pouco o cara já estava se sentindo íntimo, falando de si e querendo saber coisas a meu respeito. Nessas conversas, ficava claro que a maioria não tinha grandes objetivos na vida, viviam de cidade em cidade, como ciganos, uma hora aqui, outra acolá, sem uma definição ou meta a cumprir: ficavam uns tempos em São Paulo, no Rio e já estavam se mudando outra vez. Os motivos para a mudança poderiam ser o frio de São Paulo, a saudade da família ou mesmo a simples vontade de variar, mudar de ares. Esse tipo de comportamento se dava em maior parte com os nordestinos, que vinham para o sul, era assim que chamavam a região sudeste, para trabalharem, geralmente, fugindo da seca, da falta de emprego em suas terras ou simplesmente atrás do sonho de conseguir bons empregos para juntar dinheiro e, depois, voltar para a terra natal em melhores condições, principalmente, pelo fato de que, quase sempre, eram casados e as esposas e os filhos tinham ficado para trás; era só conseguir um emprego, juntar um pouco de dinheiro e já estavam de volta aos seus estados de origem; quando o dinheiro acabasse, retornariam para repetir o mesmo esquema.

As conversas rendiam; havia também muita troca de informação: “Belo Horizonte é bom para trabalho; tem muita construção”, informava um; outro aconselhava Brasília, após pegar o cigarro que, pelas minhas contas, já estava na décima mão, quanto a mim, tinha de me conformar e esperar pelo próximo; aquele já estava no filtro. No meio da conversa, uma cena curiosa: um rapaz desfolhou e rasgou uma carteira de trabalho. Aproximei e perguntei se ele a tinha achado, respondeu que era sua própria carteira de trabalho; agia daquela forma porque, segundo disse, um patrão tinha sujado o documento: carteira “suja” significava que o portador tinha entrado e saído de algum emprego em prazo muito curto, fazendo com que o empregado ficasse um tanto desacreditado para arrumar um novo trabalho, o jeito, em sua visão, era destruir o documento e tirar um novo, alegando que havia perdido; com uma carteira nova, ele acreditava, ficava mais fácil, porém a realidade era outra: sem o documento, ele ganhava tempo e podia usar como desculpa na hora em que a assistente social cobrasse o fato de ele estar desempregado. Outro costume era o de ficar à espera de passagens para viajar de volta para a terra natal, as assistentes sociais tinham até uma lista de espera, fato que confirmei quando a que me atendia perguntou se eu queria entrar nela; pelo que me pareceu, havia até certo incentivo por parte do governo do estado nesse sentido.

A fome se fazia avisar pelo ronco, o barulho que vinha do estômago. Um gordo baixinho, que se mantinha calado, fez uma pergunta, para ele, de grande interesse:

- Porto Alegre tem albergue?

A resposta foi esperada com certa ansiedade; era questão primordial para que uma viagem fosse decidida; a maioria já tinha passado por várias cidades do Brasil, em muitos casos, desembarcavam na rodoviária e iam direto buscar abrigo nos albergues para desabrigados, mantidos pelo governo. Um senhor tomou a palavra e passou a tecer ferrenho comentário sobre Brasília, que fazia questão de chamar de Distrito Federal (DF), falou da limpeza, da organização e fez comparações com outras cidades.

- Lá, albergado é bem tratado, não é igual aqui, tem até carro para levar o albergado onde ele quiser, e após uma pausa completou: E a comida? Nem falo! Especial! Tem de ir lá para ver. Uma beleza! Até vale-transporte eles dão pra gente procurar emprego, sem falar na roupa, sapato...

Nesse instante, o discurso foi interrompido pela pergunta de um nordestino:

- Brasília não é onde mora o presidente?

Fez-se silêncio. Quis tomar a palavra e dizer alguma coisa, usar aquele momento para despejar um pouco da minha indignação, mas preferi não falar nada.

Quando beirava a hora do almoço, o sol castigava, era o momento de escolher um banco onde houvesse sombra, isto é, se encontrasse. Nessa hora, a praça voltava a ficar cheia e o cenário era um tanto aterrador; na minha frente, só desfilavam famintos, maltrapilhos, miseráveis, indigentes, em meio aos insetos, que chegavam com o aumento da temperatura, também atraídos pelos restos de alimentos e outros detritos espalhados pelo chão da  praça; era preciso espantá-los o tempo todo, pois havia muitas pessoas portadoras de feridas pelo corpo e isso aumentava o medo de contrair alguma doença. No meio disso, dava para perceber a agitação da turma da cachaça para conseguir dinheiro para mais uma garrafa, talvez a terceira ou a quarta. Eles eram em grande número e agiam com certa organização: cada vez era a hora de uma turma sair para achacar nas redondezas ou mesmo os desavisados que aventuravam atravessar a praça, sempre havia um chefe no grupo, aquele que reunia o dinheiro e destacava quem iria comprar a bebida, tarefa que não era recebida com satisfação; o escolhido relutava em aceitar, parecia ter vergonha do ato, como se estivesse preocupado com o que iriam pensar se o vissem comprando água-ardente àquela hora do dia, ou coisa assim, tinha também o fato de que os comerciantes do local já conheciam quem era e quem não era albergado da Fundação, e, muitas vezes, se negavam a vender. Por isso, quando a bebida chegava era servida de acordo com o esforço de cada um: aquele que enfrentou a difícil missão de conseguir o líquido precioso tinha direito a beber mais, bem como, o chefe e aquele que arrecadou mais dinheiro. No final, tudo acabava em confusão; os que se julgavam prejudicados pela divisão brigavam com o responsável por essa tarefa. Apesar de a praça estar sempre policiada, devido à existência do Batalhão, não cheguei a ver a intervenção deles nessas brigas; não se preocupavam com o que acontecia, nem os mendigos se importavam com eles, era o que se podia dizer, uma convivência pacifica.

As horas passavam e a fome aumentava. De vez em quando, alguém chegava com alguma coisa, quase sempre xepa de feira: frutas esmagadas ou podres, quase nunca algo aproveitável, porém tudo era disputado com voracidade; às vezes, aparecia uma alma caridosa oferecendo quentinhas, os espertos corriam, pegavam tudo e não deixavam nada para ninguém, aquele que conseguia, nunca ficava dando sopa, corria para longe, pois sabia que seria achacado. Qualquer movimento anormal era percebido rapidamente, como se ficassem o tempo todo esperando, feito cobra a hora do bote; uma vez estando na rua, o indivíduo cria suas próprias técnicas de sobrevivência, que consistem principalmente em descobrir maneiras de matar a fome, para isso seguia-se um roteiro: pela manhã, passava-se pelo Banco da Providência, que funcionava nos porões da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro, onde tomava café com pão; a parada seguinte era em Botafogo, na Rua Real Grandeza, Meninos de Jesus era o nome da instituição, onde se tomava novo café, dessa vez, regado a um pequeno culto evangélico; a sopa ficava por conta da tia Margarida, em Marechal Hermes, que também distribuía roupas e sapatos usados; os batalhões de polícia e quartéis também eram muito procurados, pois, dependendo do humor dos soldados de plantão, era possível conseguir uma comida de boa-qualidade, segundo diziam; bares e restaurantes da mesma forma faziam parte da lista; e, se de todo não conseguisse nada, restava o próprio albergue que, em caso de sobras, abria exceção  e servia almoço a alguns escolhidos. Nesse horário, como eu pude verificar, a comida era melhor, bem diferente da sopa noturna. A fila de interessados era grande e cabia ao porteiro anunciar o número de pratos que tinham sobrado e escolher quem seriam os contemplados. A escolha era feita no olho, dependia do aspecto físico e se o indivíduo não estivesse bêbado nem todos os dias por  ali. Era um pouco difícil encontrar alguém que se enquadrasse nessas exigências e o que acabava  prevalecendo mesmo era a astúcia do pedinte em criar uma história convincente.

Conclui que a lei  da sobrevivência na rua tinha códigos muito duros, nunca um mendigo ou desabrigado dava algo a outro por mais de uma vez seguida; num primeiro momento, eram amigos e solícitos, mas isso não durava muito, logo ao perceberem que o “ajudado” estava fazendo corpo mole, que não estava “se virando”, passavam a tratá-lo com hostilidade, a evitá-lo, e espalhavam para todos que aquele indivíduo era parasita, explorador. Apesar de muitos viverem em grupos, a luta pela sobrevivência diária era individual. Isso ficou claro para mim quando aceitei o convite para almoçar com um desses grupos. O almoço aconteceu atrás dos armazéns das docas do cais do porto, próximo ao albergue, organizado por uma turma de travestis e seus “maridos”. A turma era composta por um paraense que, apesar da careca reluzente, fazia questão de ser chamado de “ela”, um negro,  magro de nome “Luísa”;  e um terceiro, que era chamado de “Baiana”, “os maridos” eram três figuras mal-encaradas: um negro, alto e magro, que se dizia artesão, um mineiro, mulato fechado,  de uns vinte e cinco anos, tipo perigoso,  que afirmava ter várias passagens pela polícia, e um branco, magro e alto, tipo gaúcho, muito calado. Quando cheguei, o almoço, feito em latas, que mais tarde eu descobriria terem sido encontradas por ali mesmo, já estava quase pronto, feito num fogão improvisado que também fora encontrado no local. Logo, o paraense anunciou que o “rango” estava sendo feito sem sal. Falava e olhava diretamente para mim, como se estivesse ordenando que eu fosse comprar. Tentei disfarçar, mas ele não me deu trégua.

- E alguém aqui falou em dinheiro? Te vira! Todo mundo entrou com alguma coisa. Vai à luta! ele falou quando eu disse que não tinha dinheiro e passou a listar os mercados da região; “seria moleza”, dizia, com uma naturalidade espantosa.

Não adiantou dar explicação, dizer que nunca tinha feito aquele tipo de coisa etc; para eles – agora todos participavam da conversa –, era uma questão de entrar no mercado, pegar a mercadoria desejada e sair fora, bastava ser rápido e objetivo. E avisaram que o “rango” tinha sido todo conseguido assim.

- Tá  pensando que alguém aqui tem grana? perguntou “Luísa”, confirmando que o “rango” tinha sido conseguido dessa forma. e depois me encarou: É a primeira vez que tu cai na rua, não é?

Respondi que sim e “ela” falou, do alto da sua experiência:

- Logo vi. Tá muito verde ainda, colega. Precisa aprender muita coisa da vida na rua, se não tu vai morrer de fome, assim que terminou de falar, saiu batendo o pé.

Fiquei ali parado, à mercê de todo tipo de comentário, cada um desfiando sua experiência: uma vida, quase sempre, marcada pela miséria, mas da qual tinham muito orgulho. O artesão abandonou sua “obra prima”, estava fazendo uma capa para uma caneta usando uma espécie de massa de modelar e alguns enfeites, e passou a falar de sua vida, não me recordo qual era o seu estado de origem, era um misto de baiano e carioca, não dava para definir pelo sotaque alterado, provavelmente, pelas constantes andanças. Contou que vivia bem com sua esposa até ficar desempregado, os dois serem despejados do barraco onde viviam e irem morar na rua. Moraram em vários pontos da cidade. Só pararam, quando encontraram uns barracões abandonados, onde firmaram moradia. O espaço era dividido com outras famílias e do convívio diário se deu a tragédia: um belo dia um “paraíba” se meteu com sua esposa, ele não pestanejou e sangrou o “cabra da peste”, que morreu na hora. Desde então, vivia uns tempos aqui e ali; não tinha lugar certo para morar. Da mulher, pela qual sangrara o “cabra”, não teve mais notícia.

- Deve de tá vivendo com outro por aí, falou, acrescentando que encontrou a “Luísa” e queria viver com “ela” para sempre; estava apaixonado. Lamentava nunca ter dado sorte com mulher, era por causa de uma desgraçada que estava naquela vida, depois, disse, antecipando-se a uma pergunta que eu fatalmente acabaria fazendo; Se a “Luísa” é homem? É sim. Nessa vida, a gente tem de tentar de tudo. Tô nessa vida há anos.

- E a polícia? perguntei.

- O que tem?

- Nunca foi preso pelo crime?

- E matar mendigo é crime? falou voltando para o seu trabalho; o que fazia, vendia para os turistas na praia.

Sem resposta, me calei, e fiquei observando o seu trabalho: sobre a massa de modelar, que trabalhava com os dedos, dando alguns contornos estranhos, colocava umas pedras coloridas, que dizia serem semipreciosas: era a ornamentação final; a caneta ganhara uma capa, algo grosseiro, feio mesmo, que ele fazia acreditando tratar-se de uma verdadeira obra de arte.

Uma hora depois “Luisa” voltou com o sal, trouxe também tomates e ovos. Todos ficaram admirados com as “compras” e ela explicou, calmamente, que entrou no mercado, como se tivesse dinheiro, pediu o queria e saiu sem pagar, indiferente aos apelos do dono do estabelecimento. E assim, eu estava diante de mais uma prática comum entre os albergados, ou seja, os pequenos furtos ao comércio da região. Depois do almoço, todos dormiram espalhados pelo chão, o sono dos justos.

Ao cair da tarde, o movimento na praça começava a aumentar; era quando os que saíram pela manhã começavam a retornar. Alguns regressavam do trabalho; havia muitos que, mesmo empregados, continuavam morando no albergue, a maioria, no entanto, passava o dia fazendo “turismo” pela cidade: o Aterro do Flamengo, as praias da zona sul e a Quinta da Boa Vista eram os lugares mais procurados; aos domingos, a pedida era a “Feira dos Paraíbas”, em São Cristóvão, local, segundo os mais espertinhos, ideal para praticar pequenos furtos; informações que eu obtive com alguns dias na praça, onde já conseguia identificar algumas pessoas e seus costumes. Sabia, por exemplo, quem era albergado e quem não era; havia os mendigos que vinham para a praça apenas durante o dia, ali se juntavam com os albergados  e só iam embora à noite, para procurar algum canto da cidade para dormir; muitos dormiam na própria praça, o coreto era muito disputado, mas a maioria dormia espalhada pelas ruas do bairro; isso se dava porque o indivíduo fora expulso do albergue ou porque, em maior número, não via diferença entre dormir na rua ou no albergue.

Vez por outra apareciam homens, em pequenos caminhões, ou caminhonetes, procurando pessoas para trabalhar, na maior parte das vezes, eram biscates: trabalho braçal no cais do porto, em sítios, ou para carregar entulho de alguma obra. Cheguei a pensar em aceitar uma proposta dessas, mas fui alertado de que não seria uma boa ideia: um rapaz me contou que era furada; em muitos casos, o trabalho, bem como a remuneração e as condições, em nada batia com o combinado. Ele mesmo fora vítima uma vez, disse, ao aceitar um trabalho pelos lados da região dos Lagos, no estado do Rio. Juntamente com outros companheiros foi contratado por um homem para aplainar um terreno onde seria construída uma casa. O homem os levou para o lugar distante, lá, deu-lhes as ferramentas e os mandou trabalhar, e foi embora, prometendo voltar com o almoço, porém não apareceu mais. Ele e os colegas ficaram três dias no local, sem comida ou água potável, dormindo ao relento. No final dos três dias, deixaram o local, voltando a pé para o Rio, sem nunca mais ter encontrado o tal homem. Ao encerrar, fumando uma guimba de cigarro que eu tive a impressão de que lhe queimava os dedos, de tão pequena, ainda fez outras considerações: eu deveria tomar muito cuidado com o perigo do trabalho escravo, pois muitos não tinham a sorte que ele teve de poder voltar e ficavam presos, obrigados a trabalhar por um prato de comida.

- Ou nem isso, ele finalizou.

Mulheres eram muito procuradas para trabalharem como domésticas em casas de família, mas não tinham melhor sorte; dificilmente dava certo: quando não eram as patroas que exigiam coisas absurdas ou as maltratavam, como relatavam, eram elas que, uma vez dentro da casa, aproveitavam para praticar furtos; nesses casos, era comum ver essas senhoras na porta do albergue tentando reaver seus pertences.

A praça tinha peculiaridades como a mendiga negra, aparentemente maluca, que vivia por ali: falava sozinha e caminhava de um lado para o outro, sem parar, apanhando coisas que encontrava pelo chão, figura conhecida, fazia amizade com um ou outro que se aproximava dela, no entanto, o que gostava mesmo era de travar longas conversas com seres invisíveis, com as quais brigava e, no meio dessas brigas, ia da gargalhada ao choro, sem  muita ordem; um homem, provavelmente bêbado, que dormia num banco, teve a carteira roubada, o ladrão fugiu seguido por aqueles que se julgavam no direito de dividir o produto do roubo, quando acordou, era tarde demais; do outro lado, uma mãe espancava um bebê, e, vendo a cena, as outras crianças que estavam junto a ela choraram também e tiveram igual tratamento, entre xingamentos, a mulher deixava  claro que o marido a abandonara no albergue, com os filhos, e desaparecera.

Os travestis, e eles eram muitos, garantiam o lado engraçado da praça, quebrando, assim, a morbidez do ar; entre eles, estava um que atendia pelo nome de Leon Schneider: baiano, mulato, alto e esguio, bastante feminino, sua especialidade era fazer shows imaginários, passava o dia bolando coreografias. Às vezes, cantava, num inglês incompreensível, misturado a uma dança maluca, músicas de sucesso; dizia ser uma estrela, porém, a plateia, desatenta, não o aplaudia ao final de seus “shows”. Ele não se importava; um dia seria aplaudido numa boate do Rio, seria uma estrela de verdade.

A vida seguia. À tardinha chegavam “as mariconas”, assim eram chamados os  homens de idade que vinham até à praça em busca de algum garotão, com promessas de vida fácil: dinheiro,  casa, comida, enfim, até bons empregos prometiam arrumar. Eram em grande número e se davam entre si. Generosos, ofereciam cigarros e pagavam lanche na padaria; a cantada vinha logo a seguir. Não eram poucos os rapazes que se deixavam levar pelas promessas de mordomias, alguns sumiam da praça e depois reapareciam, sempre com uma história para contar, normalmente, de decepção; as promessas eram falsas ou o preço a pagar por elas era considerado alto demais. Muitos usavam a ocasião para praticar roubos. Não raro, surgiam com os objetos roubados: rádios, roupas, dinheiro, bicicletas, máquinas fotográficas e congêneres. Às vezes, o produto do roubo era vendido ali mesmo na praça, o que não impedia a vítima de voltar e tentar “conquistar” outro rapaz.

Inexplicavelmente, eu ficava ali, quase como um mero espectador, sem grande consciência do que estava me acontecendo; há muito deixara de ficar pensando na vida  e perdera a noção de certo e errado, nem a fome era problema, pois acostumara a não ter o que comer durante o dia: o café da manhã e a sopa viraram as únicas refeições diárias. Um dia ou outro, a sopa era substituída por um arroz com legumes. Isso não deixava de ser bom, porém era raro. Meu convívio dentro do albergue não era diferente de todos os outros albergados; era maltratado e humilhado como qualquer um, e, como qualquer um, reagia ou não, dependendo da conveniência. E foi durante uma conversa no dormitório que descobri que o dia seguinte seria um domingo; a maioria tinha grandes planos para esse dia. Quanto a mim, sabia que seria um dia como outro qualquer: levantaria cedo, na verdade, seria acordado daquela maneira amável, e iria para a praça; para mudar isso, só se acontecesse um milagre.

          

 

 


Capítulo 6

 

O MILAGRE

 

Como eu previra, o domingo amanheceu sem nenhuma novidade; a praça estava praticamente vazia, uma vez que quase todos os albergados saíram para andar pela cidade; alguns me convidaram para ir com eles, mas não aceitei, faltava ânimo, andar pela cidade feito um louco só  iria fazer aumentar a minha debilidade física; mal alimentado, eu estava a cada dia mais fraco e era mais sensato ficar na praça para poupar energia.

A manhã passou e logo a tarde chegou, com ela chegaram os crentes, com a nobre missão de nos converter. Para eles, o fato de estarmos naquela situação era porque não tínhamos aceitado Jesus como nosso Salvador, era preciso deixar o grande mestre tocar os nossos corações. Falavam, pregavam, e insistiam usando suas histórias pessoais como exemplos, porque eles também já estiveram como nós, porém aceitaram Jesus e Ele os salvou. O mesmo poderia acontecer com cada um de nós, bastava querermos, por isso, eles estavam ali: para nos tirar daquela vida; Jesus não estava satisfeito com aquele nosso estado de deploração e miséria. Eram persistentes e usavam de todo tipo de argumento para conquistar a confiança das “ovelhas”; chegavam a pagar café ou dar pequenas quantias em dinheiro pela garantia de que seriam ouvidos. Pertenciam a igrejas com denominações diferentes e alternavam os horários; parecia que agiam de forma combinada, certamente, para evitar choques de interesses. Primeiro vinha um grupo de jovens, que se apresentava como sendo da igreja Universal do Reino de Deus, se espalhava pela praça, indo de banco em banco. Nessas ocasiões, se travava os diálogos mais estranhos possíveis. De um lado, o crente, falando das maravilhas da vida com Jesus; do outro, o desabrigado, tentando convencer de que também era religioso e tinha fé, o que não impediu que chegasse àquela situação. As conversas sempre acabavam chegando ao problema da falta de emprego, habitação e, não podia deixar de ser, ao problema da fome no país. Alguns diziam estar há dias sem comer e chegavam a confessar sentirem falta de Deus, mas a falta de comida era maior. Sem argumentos, os jovens acabavam se afastando: a palavra perdia força diante da realidade dura da vida; não era fácil convencer um homem faminto e maltrapilho de que Jesus era a salvação; para um faminto, um prato de comida é a salvação. Mesmo assim, eles não deixavam de convidar a todos para que fôssemos aos cultos da igreja; com certeza, lá encontraríamos uma saída. Muitos acabavam aceitando o convite, não interessados na tão “aclamada” salvação, mas no que essa visita à igreja pudesse lhes render. Um pouco mais tarde, já anoitecendo, era a vez  de uma turma mais velha, provavelmente, de uma igreja próxima, pois vinha munida de  um grande aparato técnico: aparelhos de som, órgão eletrônico, guitarras etc. A parafernália era instalada perto do coreto, na frente do busto do Coronel Assumpção, diante do olhar curioso de todos, principalmente das crianças, que acompanhavam tudo de perto. Novamente, tinha-se início a garimpagem de almas para Jesus. Eram distribuídos panfletos com salmos e, em seguida, pelo microfone, todos eram conclamados a se aproximarem; o culto ia começar. O convite era feito de forma eloquente, porém poucos se interessavam, eles insistiam e, aos poucos, um e outro começava a se aproximar. Logo, se fazia uma pequena roda; a voz do pastor falando pelo microfone e as músicas tinham um apelo forte, era quase impossível não se deixar envolver. Pelo meu lado, me limitava a ouvir de longe, sem tomar parte, embora sentisse que precisava me apegar a alguma coisa para poder encontrar forças e sair daquele estágio de letargia em que me encontrava.

Certa hora, eu estava ouvindo o culto, de longe, quando Leon se aproximou e me convidou para tomar café na padaria, pois ele tinha conseguido algum dinheiro com os crentes. Pensei em recusar o convite, entretanto a fome falou mais alto e fui com ele. Quando chegamos à padaria, ele pediu duas médias de café com leite e dois pães com manteiga e fomos para o balcão, que ficava de frente para um grande espelho que havia na parede. Leon comia, distraidamente, enquanto eu olhava a minha imagem refletida nele sem acreditar no que via; eu não era aquele cara do espelho, era outra pessoa, um estranho qualquer, não eu. “Como podia ter me permitido chegar àquele estágio?” era a pergunta que eu me fazia, intimamente, sem conseguir tirar os olhos do espelho. Fui tomado por uma grande perturbação, a fome passou e eu não conseguia comer. Leon percebeu que eu não estava estranho e perguntou o que estava acontecendo. Não dei reposta e me aproximei do espelho, como se quisesse tocar aquela figura castigada pela fome e pelo sol. Mais de dez dias tinham passado desde que eu chegara ali. Lembrava, vagamente, da minha resistência inicial, da conversa com a assistente social no dia da chegada: “É por um ou dois dias...” Nasceu em mim uma revolta muito grande, revolta comigo mesmo; eu, que tinha chegado à Fundação procurando ajuda, estava no fundo do poço e nem sequer podia me reconhecer numa imagem deformada refletida num espelho de padaria. Minha memória fez um giro, chegando à Ibiá: a família, a casa e o conforto há muito deixado para trás. “Como seria se meus irmãos me vissem naquele momento?” Certamente me internariam como louco, dizendo que eu tinha perdido o juízo, o bom-senso, a vergonha na cara, que tinha perdido tudo; nem queria pensar. Foi um consolo lembrar que meus pais já estavam mortos, portanto, livres de ver o filho sujo, maltrapilho, faminto, um verdadeiro mendigo, perdido numa praça aonde a vida caminhava de mãos dadas com todas as misérias humanas. Muito provavelmente não suportariam; não tinham criado um filho com tanto sacrifício para ter aquele fim. De repente, fui invadido por uma vergonha que nunca tinha sentido na vida. Mecanicamente, me aproximei mais do espelho, cheguei bem perto, na tentativa de ver algo além do que era mostrado, de reencontrar a minha própria alma. Fui chamado à realidade pelo balconista da padaria, que reclamava que eu estava sujando o espelho.

- Sai daqui, mendigo sujo! ele vociferou.

Tentei esboçar uma reação, queria enfrentá-lo: “Como ele ousava falar daquele jeito comigo?” Leon pressentiu que aquilo ia acabar em confusão e me puxou pelo braço. Resisti um pouco, mas ele conseguiu me arrastar.

- Tá  ficando louco, cara? perguntou ele.

Sem responder, saí pela praça, onde os crentes ainda faziam o culto, o número de ouvintes era maior e um homem, bem-vestido, dava um depoimento: esteve no fundo do poço e Jesus lhe estendeu a mão. Agora, tinha emprego, casa, família e uma fé que o salvara. Após falar, ele passou o microfone para o pastor e, novamente, sua voz forte tomou a praça, convidando todos a aceitarem Jesus, pois Ele nos libertaria de uma vida errônea e fracassada, como fez com aquele irmão, para uma vida de acertos e sucessos.

- Só Jesus pode salvar! bradava.

Alguns ouvintes tomaram à frente, atendendo ao convite. Já um pouco mais calmo, passei a refletir se deveria ou não fazer a mesma coisa. Cheguei à conclusão de que não precisava de um gesto exterior para tomar uma decisão que deveria ser interior. Permaneci parado, sem me mover e, comigo mesmo, em estado de oração, fiz uma promessa: a partir daquele momento, daria um novo alento para minha vida; aquela situação não poderia continuar, precisava reconquistar  tudo o que tinha perdido nos últimos tempos, acima de qualquer coisa, precisava recuperar minha identidade pessoal, do contrário, me perderia para sempre.

Da decisão tomada na praça, parti para a ação; tão logo o dia amanheceu, comecei um verdadeiro ritual: fiz a barba, com um barbeador emprestado e a ajuda de um pedaço de espelho, tomei um banho, e peguei roupas limpas no bagageiro. Quando atravessei a praça e ganhei a rua, parecia uma nova pessoa, era grande a minha vontade de mudar aquela situação. Durante a travessia, procurei não falar com ninguém: sabia que tentariam me reter e precisava ser forte, pois, como um ser impotente, eu me deixara arrastar pelos subterrâneos daquela praça. Senti-me aliviado, quando me vi andando no meio do povo, na Avenida Presidente Vargas, como um cidadão comum.

Aquele foi um dia longo e cansativo; numa maratona que parecia não ter fim, fui a todas as agências de emprego que conhecia, preenchi fichas e mais fichas e, a cada uma que entregava, ouvia sempre a mesma coisa: era preciso aguardar, pois não tinham vaga no momento. Apesar da minha determinação, nada consegui. Passou o primeiro dia, o segundo e o terceiro dia, era sair de manhã, com alguma esperança, e à tarde estar de volta, cheio de cansaço e desânimo. E já não tinha a companhia do Geraldo, que saíra do albergue depois de arrumar um serviço de faxineiro num prédio, em Copacabana, e teve a sorte de o emprego oferecer moradia: estava livre daquele lugar sujo e infecto.

Os dias de ócio, passados na praça, fizeram com que eu perdesse um pouco a noção das coisas. Mesmo com todo otimismo, era preciso não esquecer de que vivíamos a era Collor, o país estava mergulhado, como esteve quase sempre, numa crise violenta. A recessão era muito grande e só se falava em demissões em massa, era quase impossível conseguir algo decente naquele estado de coisas, agravado pela retenção do dinheiro das cadernetas de poupança.

Minha experiência anterior na área de contabilidade e vendas de nada adiantou. O jeito foi atacar em outras frentes, afinal, eu tinha urgência em arrumar um emprego, o processo de admissão em empresas é sempre muito demorado e, às vezes, até complicado mesmo; tinha sentido na pele, recentemente, que não adiantava ter experiência, um pequeno detalhe e pronto, a chance do emprego ia por água-abaixo. Precisava de uma saída rápida, talvez, de uma solução mágica. Lembrei que poderia fazer figuração em novelas, para isso, era só ir para a porta das emissoras de televisão e falar com algum agente. Só que aí é que morava o perigo: fiz muita figuração e nunca consegui receber um único tostão. Os tais agentes, na hora do pagamento, sempre desapareciam ou alegavam que o meu nome não estava em suas listas, além de ser maltratado nos sets de gravação pelo pessoal das produções e os diretores, que sempre viam os figurantes como se fossem idiotas ou simples gado. No que eles não estavam de todo errados, pois, alguém que se submete a passar horas debaixo do sol, sem comida e aturando gritos, não é outra coisa. Dessa época, guardo uma lembrança engraçada: foi nas gravações da novela Kananga do Japão, da Rede Manchete; fazia figuração na gafieira que dava nome à novela e, junto com outros figurantes, ficava sentado nas mesas do cenário. Nelas havia muita batata cozida com casca e tudo, creio que para se passarem por salgadinhos, levados pela fome, nós devorávamos aquilo em questão de segundos, nunca comi tanta batata cozida na minha vida, o que obrigava a produção, depois de muito xingamento, é claro, repor o “salgadinho”. Cheguei a pensar em me tornar camelô vendendo balas nos trens da Central, mas, para isso, teria de dispor de algum capital e eu não tinha dinheiro algum. Também tomei informações no albergue, já que ali se sabia de tudo e descobri que no Moinho Fluminense contratava-se ajudante de caminhão, no Cais do Porto, após uma inscrição, muito concorrida, podia-se trabalhar como carregador e outras funções, o requisito importante, mais uma vez, era a força física, o resto era aquilo que eu já sabia mesmo, ou seja, as figuras que apareciam na praça oferecendo trabalho em condições que só as pessoas muito desesperadas e ingênuas aceitavam.

Já era quarta-feira e nada. O prazo de quatorze dias que a assistente social me deu estava no fim. Eu tinha de arrumar alguma coisa de qualquer jeito. Sem isso, ela não me deixaria ficar. A menos que eu, como fazia a maioria, inventasse uma bela mentira, porém não estava a fim de mentir, uma vez que não estaria mentindo para a assistente social, mas para mim mesmo. Contudo, tive de procurá-la mesmo sem nada ter conseguido. Fui sincero e ouvi um longo sermão. No final,  ela me deu mais quatorze dias, lembrando-me de que era a última chance, na próxima vez, não bastaria dizer que estava trabalhando, seria necessário comprovar.

No dormitório sempre tinha aqueles mais espertinhos, uns tipos que se apresentavam como agenciadores de serviços. Fui  alertado de que era furada, no entanto resolvi arriscar; não tinha outra escolha. Procurei um desses “agentes”, que se dizia mestre de obras, que estava recrutando serventes, para trabalharem numa construção em Laranjeiras, bairro da zona sul carioca. Apesar de ele ter dito que o trabalho era duro, aceitei. Avisei apenas que não tinha dinheiro para passagem e o “agente” se ofereceu para pagar. Para isso, bastaria procurá-lo pela manhã. Dormi, cheio de esperança; pelo menos, o trabalho na obra seria um começo.

O dia amanheceu, procurei o tal homem e ele pareceu-me um tanto escorregadio, pois fingiu não se lembrar de mim. Refresquei sua memória, falando do nosso trato, ele mandou que eu o acompanhasse e foi o que eu fiz. No ponto de ônibus, percebi que outros albergados iriam também, porém nenhum conhecido meu. Pegamos o ônibus Estrada de Ferro/Cosme Velho. Na hora de passar na roleta, ele avisou que não pagaria a minha passagem. Falei alguma coisa na tentativa de fazê-lo lembrar da promessa feita e de nada adiantou. Ele foi taxativo: eu que “me virasse”. O ônibus seguiu viagem e eu permaneci na parte de trás tentando pensar no que fazer. A certa altura da Rua das Laranjeiras, o homem e seus companheiros desceram. Da janela deu para ver que eles faziam comentários e riam de mim. Percebi que, se não descesse, os perderia de vista e a chance do trabalho estava acabada; não tinha o endereço da obra. Foi quando me aproximei da trocadora, expliquei o que estava acontecendo comigo e pedi para descer sem pagar, ela não foi muito simpática ao meu pedido, mas fez sinal para que o motorista abrisse a porta traseira. Desci e comecei a andar, à procura do homem e a turma; não os encontrei. Decepcionado, resolvi fazer o caminho de volta, passando por várias obras, nunca era a que eu procurava, mas aproveitava para indagar se havia vagas, porém ouvia sempre a mesma resposta:

- Não tem vaga. Tá tudo completo, dizia alguém, atrás de uma janelinha feita na madeira que circundava a obra.

Continuei andando, sem muita direção, e acabei chegando à Glória, nas imediações da Rua Augusto Severo, próximo à Praça Paris, que estava em obras. Aproximei para pedir informação e fui informado que tinha vagas. O responsável pela obra me contratou e eu comecei a trabalhar naquele dia mesmo, sem carteira-assinada ou qualquer outra garantia. O trabalho consistia na reforma do conjunto da Praça Paris para a ECO/92, um encontro de vários líderes mundiais que aconteceu no Rio de Janeiro, com o objetivo de discutir a preservação do planeta, e fazia parte da maquiagem que a cidade sofreu para receber os chefes de estado e suas delegações.

Se por um lado, eu estava feliz de, finalmente, estar trabalhando, por outro, estava triste: aquilo não era, propriamente falando, um trabalho; a diária era muito pequena e as condições de trabalho eram desumanas. A prefeitura, ou as empreiteiras contratadas por ela, passou o serviço pesado para um tipo de agente que normalmente eram chamados de “gatos” e esses eram os meus patrões. No intuito de conseguir uma mão de obra barata, eles contratavam, em sua maioria, desabrigados e albergados da Fundação Leão XIII. Depois de alguns dias trabalhando, pude constatar isso, pois lembrei que já tinha visto o encarregado da obra na porta do albergue, outro dado era o número grande de rostos conhecidos, pessoas com as quais eu convivia na Praça da Harmonia e no albergue.

No dia do pagamento, tive certeza de que não se tratavam de pessoas sérias; os responsáveis pela obra, Paulista, e seu sócio Geovane, desapareceram. Quando reapareceram, anunciaram que a comida, oferecida inicialmente como gratuita, seria cobrada; cobrariam também pelas ferramentas perdidas ou quebradas. Isso gerou uma enorme agitação em todos, uma vez que o preço cobrado era bem acima do praticado no mercado, além de tudo, ainda tinha as constantes falhas do apontador, que sempre se esquecia de apontar os dias e alegava que o indivíduo tinha faltado ao trabalho. O que, em muitos casos, não era verdade e se dava, com mais frequência, com os mais simples e analfabetos, que era a maioria. Houve sexta-feira, dia do pagamento, em que foi necessária a presença da polícia para resolver os impasses causados por essas divergências. Momento em que o Paulista, sempre muito bêbado, ameaçava não pagar a ninguém; e fazia questão de lembrar a condição social de cada um dizendo que sabia como e onde nós vivíamos, portanto, não adiantava fazer exigências, segundo ele, um homem naquela situação não tinha condições de exigir nada; ao dar emprego para pessoas como nós, ele estava fazendo um favor à sociedade.

Havia aqueles que trabalhavam somente em troca do almoço: vinham pela manhã e ficavam enrolando até a hora do almoço, depois que comiam, desapareciam. Definitivamente, não era um bom ambiente de trabalho; as brigas eram comuns e, por vezes, surgiam implicâncias infundadas. Com facilidade, era possível se meter em confusões que, quase sempre, terminavam com alguém ferido gravemente. Nas brigas, as ferramentas eram usadas como armas e os golpes eram certeiros. Contudo, eu não tinha outra saída: o jeito era me manter firme, para levar adiante o meu objetivo de conseguir algo melhor tão logo tivesse a chance.



  

Capítulo 7

 

FUNDAÇÃO LEÃO XIII:

UM POÇO DE PROBLEMAS
 

O tempo passava e eu continuava albergado. De certa forma, já tinha me acostumado com a situação; o dinheiro que ganhava na obra mal dava para minhas despesas pessoais, o que sobrava, quando sobrava, ia juntando, pois tinha planos de sair de alugar um quarto, mas queria que isso acontecesse de forma definitiva, não como alguns conhecidos faziam; bastava conseguir algum dinheiro e iam correndo dormir em hotéis e, quando o dinheiro acabava, voltavam para o albergue. Acontecia quase sempre; normalmente, passavam os finais de semana em hotéis baratos, hospedarias e retornavam para o albergue na segunda-feira. Achava perda de tempo; quando saísse do albergue, teria de ser para não voltar mais.

Não era difícil perceber que as coisas não estavam bem na Fundação Leão XIII. A meu ver, isso era provocado pela entrada do novo governo. Além das deficiências normais e a diminuição de funcionários, começou a faltar comida. Problema causado, em parte, por causa do aumento do número de pessoas que, com as chuvas, procurava a instituição em busca de abrigo, gerando superlotação; estava claro que o albergue não tinha infraestrutura para receber tanta gente e o resultado era o caos total, principalmente nos dias mais frios, quando faltava espaço para dormir e roubavam cobertores e colchonetes; não bastasse passar frio durante a noite, tinha problema na certa, pela manhã, na hora da devolução. No refeitório, roubavam-se pratos de comida uns dos outros; qualquer descuido, alguém passava a mão: era comum um albergado sair correndo atrás do prato de sopa que lhe fora roubado; cena engraçada, mas também muito triste.

A atuação do serviço social não surtia muito efeito. Apesar de todo o esforço das assistentes sociais, tudo o que elas podiam fazer era dar mais ou menos prazo de permanência para esse ou aquele; não havia um acompanhamento caso a caso como elas faziam crer. Tudo se resumia àquele discurso requentado e nas pequenas ameaças que todas faziam na hora de revalidar a autorização de permanência, quando davam conselhos e,  em troca, ouviam falsas promessas; não tinha muito mesmo o que fazer. Por vezes, a atuação delas entrava em choque com o trabalho dos outros funcionários, sobretudo, dos plantonistas e porteiros; era comum um indivíduo ser expulso durante a noite, por insubordinação ou qualquer outra razão, e no outro dia estar de volta, ostentando nova autorização de permanência. Embora, em muitos casos, as expulsões acontecessem por pura perseguição dos plantonistas, havia aqueles em que o elemento era realmente uma figura perigosa e sua expulsão acontecera por motivo de roubo, uso de drogas ou brigas, com agressão física, o que confirmava a suspeita de que, no meio dos albergados, tinha muitos marginais. Alguns faziam questão de contar abertamente os crimes cometidos e as passagens pela polícia, indivíduos que na hora de uma briga não hesitavam em ferir o adversário. Presenciei alguns casos de esfaqueamento que terminaram com o agredido sendo levado para o hospital; geralmente, levavam para o Hospital Sousa Aguiar. Como, creio eu, o serviço social não tinha o hábito de apurar essas ocorrências, era possível  ver aquele mesmo indivíduo de volta e pronto para cometer novas infrações. Quando isso acontecia, se podia ouvir os plantonistas acusarem as assistentes sociais de protegerem marginais. Tudo isso gerava um clima de tensão muito grande. E quem pagava o pato eram os albergados que, além de serem obrigados a conviver com tais elementos, tinham de enfrentar a ira dos plantonistas.

Mudanças estavam acontecendo a olhos vistos: em pouco mais de um mês “hospedado” ali, dava para perceber que, entre outras coisas, os funcionários, que eram também albergados, passaram a deixar os seus cargos e voltaram à simples condição anterior. Nunca fiquei sabendo ao certo como se dava esse tipo de trabalho; alguns diziam que a função deles era cobrir o lugar dos funcionários que tinham vários empregos ou eram funcionários fantasmas; outros, diziam tratar-se de pura exploração; e ainda outros, afirmavam que havia alguns funcionários-albergados que estavam naquela situação há anos. Com o novo governo, parece que esse tipo de procedimento estava sendo revisto e algumas coisas, pelo menos temporariamente, teriam de voltar para os seus devidos lugares. Se isso era verdade ou não, não posso confirmar. O certo é que esses funcionários-albergados existiam e não gozavam nem um pouco da simpatia dos demais albergados, principalmente por aqueles que, acreditando tratassem de funcionários, obedeceram a alguma ordem imposta por eles. Quando eles entravam no dormitório eram vaiados, tratados com hostilidade ou simplesmente ignorados.

As mudanças atingiram vários setores, o que dificultou muito a vida lá dentro. E isso se fez sentir com relação ao bagageiro que, no início, eram dois e, agora, apenas um, que trabalhava só meio-expediente. A saída era controlar as trocas de roupa ou carregar na mochila as de uso diário. O serviço-médico simplesmente deixou de existir, a relação entre funcionários e albergados piorou muito e os abusos, agressões e maus-tratos passaram a ser constantes. Isso fazia com que vivêssemos em constante tensão; qualquer problema ou mal-entendido terminava em expulsão, muitas vezes, debaixo de espancamento. Nessas ocasiões, todos ficavam assistindo, sem nada fazer, mesmo quando se tratasse de algum conhecido, pois a confusão poderia virar para cima de quem se metesse; ao defender um colega, corria-se o risco de ir para a rua também: numa noite, um senhor bêbado insistia em entrar no albergue e diante de sua insistência o porteiro desferiu-lhe socos e pontapés. Condoído, um rapaz tentou impedir a covardia. Nada conseguindo, saiu e logo voltou com uma viatura da polícia. A plantonista, uma senhora negra, alta e forte, apareceu. Os policiais entraram no albergue juntamente com a plantonista, o porteiro, o senhor e o rapaz que denunciou o caso. Ficaram por lá um tempo e na  saída, uma surpresa: o porteiro voltou para o seu posto, mas o senhor e seu defensor foram levados pela polícia e não foram mais vistos no albergue a partir daquele dia. Por essas e outras, o melhor era fingir que não estava vendo nada; eu mesmo já tinha enfrentado uma situação dessas numa determinada noite: quando cheguei, o jantar estava quase no fim, não tinha quase ninguém nas mesas e não havia fila, resolvi ir direto ao cozinheiro e fui recebido aos gritos; segundo ele, eu tinha de ficar na fila, que não havia, e esperar a minha vez. Esperei por um longo tempo e ele anunciou que o jantar já tinha sido encerrado, negando-se a me servir. Como sabia que não adiantava reclamar, aceitei resignado e subi para o dormitório sem jantar.

Os plantões funcionavam de forma diferente; uns se preocupavam muito com uma coisa e outros deixavam a mesma passar despercebida. Era, por exemplo, o que acontecia com relação ao uso de drogas dentro do dormitório, a maioria dos plantões ignorava o fato, porém, num deles, um rapaz mulato de estatura média, de uns trinta anos, fazia marcação cerrada e não perdoava, marcava em cima; era comum vê-lo andar pelo dormitório, portando um porrete, procurando surpreender algum usuário, principalmente, nos grupinhos que se formavam. Por vezes, fazia uma revista superficial nas bolsas e outros pertences ou até mesmo no próprio indivíduo. Numa dessas rondas, ele encontrou um senhor grisalho e um rapaz fumando um cigarro de maconha e foi um deus nos acuda, partiu para cima dos dois, dando-lhes pauladas a torto e direito. No final, os expulsou, usando os mesmos métodos de sempre. Após fazer isso, voltou ao dormitório e fez um discurso curto e muito nervoso alertando a todos que quem ele encontrasse fazendo uso de drogas seria colocado para fora, pois não iria admitir aquele tipo de coisa em seu plantão.

Procurei o serviço social pela quarta vez para pedir novo prazo. Passados, praticamente, quarenta e cinco dias que eu estava naquele lugar tinha a sensação de que o meu destino estava selado ali; a ideia de ter de procurar uma assistente social fazia com que me sentisse um incapaz; era duro entrar naquela sala para pedir que me deixasse ficar mais tempo. Jamais pensei chegar a uma situação tão humilhante na minha vida, sobretudo, quando ela vinha com aquela conversa de que eu não estava me esforçando e isso e aquilo; não adiantava mostrar minhas mãos calejadas de tanto empurrar carrinho cheio de terra de saibro para cima e para baixo na obra, o discurso continuava o mesmo do primeiro dia, parecia não ter uma versão diferente, não fazia distinção entre um trabalhador e um vagabundo. Tinha vontade de mandá-la à merda, mas não podia, tinha de aguentar calado; meu destino estava nas mãos dela, cabia a ela decidir se eu iria para a rua ou se continuava no albergue, apesar de tudo, eu ainda preferia aquele lugar à rua.

Por estar ganhando pouco na obra, crescia em mim a vontade de arrumar outra maneira de ganhar dinheiro e com isso apressar minha saída do albergue. No canteiro da obra, fiquei sabendo que o jornal O Dia, um dos jornais mais populares do Rio de Janeiro à época, contratava, aos sábados, homens para trabalho-temporário. Bastaria ir até à sede do jornal, na Rua do Riachuelo, me candidatar a uma vaga e torcer para ser um dos escolhidos. A escolha era feita pelos responsáveis pela circulação do jornal; o único requisito exigido era a força-física. Embora estivesse longe de aparentar disso e mesmo com toda a concorrência, acabei  ganhando uma das vagas.  O trabalho era encher os caminhões-baú ou atravessar o jornal que saía da esteira para o depósito, que ficava do outro lado da rua. Um trabalho um tanto puxado atravessar os carrinhos, do tipo burro sem rabo, carregados com quarenta fardos, cem jornais em cada, a movimentada Rua do Riachuelo, era preciso desviar dos carros ou enfrentar a descida usando o braço como freio. No final do dia vinha a compensação; o que eles pagavam  por doze horas de trabalho era quase o mesmo tanto que eu ganhava trabalhando de segunda à sexta-feira na obra, além disso, a comida era melhor e de graça. Depois do primeiro sábado, não deixei mais de ir. Trabalhava durante a semana na obra e, no sábado, no jornal. Com o tempo, passei a ter lugar cativo, quase um emprego fixo; bastava chegar de manhã bem cedo e o meu lugar estava garantido. Dessa maneira, descobri uma forma de juntar dinheiro mais rápido para, assim, atingir os meus objetivos.

Apesar de toda a maratona, não me sentia cansado; cheio de esperança me dedicava à leitura de livros do tipo autoajuda na tentativa de não me deixar influenciar pelo ambiente em que vivia, também, tive de volta meu sentido de religiosidade, porém, numa igreja se deu um pequeno incidente que me fez conhecer um pouco mais da hipocrisia da religião: num domingo, fui assistir à missa numa igreja da Av. Passos e, ao me dirigir ao padre para receber a comunhão ele se negou a dá-la; a comunhão era privilégio daqueles que haviam confessado e eram frequentadores assíduos de sua paróquia. Voltei para o meu lugar e terminei de assistir à missa. Ao refletir sobre sua atitude, cheguei à conclusão de que ele me negara a hóstia por causa da minha aparência; trabalhando na obra, de sol a sol, não era mesmo lá essas coisas, certamente, julgou que eu fosse um mendigo e, talvez, não estivesse de todo errado, mas isso não era, no meu entender, motivo para me negar o “corpo de Cristo”, e isso partindo de um “representante de Deus na terra”, me chocou muito. No entanto, não abalou a minha fé, pois ela estava e está acima da pequinesa daquela pobre alma que se julgava com poderes para agir em nome Deus.

Nesse período, minha rotina mudou completamente. Passei a tomar café na padaria e dali ia para a obra na Praça Paris, de onde só retornava à noite. Como precisava aguardar a hora da entrada e já não tinha mais tanta necessidade de ficar na fila para garantir o jantar, acabava ficando mais tempo na praça ou procurava me demorar na rua, na esperança de só chegar ao albergue quando os portões já estivessem abertos. E isso eu conseguia indo a cinemas ou exposições em lugares como o Centro Cultural Banco do Brasil, na época, com quase toda a sua programação gratuita. Ainda assim, acabava voltando cedo e ficava novamente em contato com todo aquele burburinho. Tudo continuava como sempre: mendigos, bêbados, ladrões, loucos, todos naquele convívio promíscuo.

Um sujeito, que eu vira chegando uns dias antes meio com cara de peixe fora d’água, já estava totalmente integrado, o que me fazia crer que esse era o caminho natural pelo qual quase todos passavam como aconteceu comigo. Muitos chegavam ali limpos, até bem-vestidos, mas em poucos dias já estavam sujos e maltrapilhos como qualquer outro. Tive sorte de não me deixar levar pelos constantes convites para beber cachaça ou me drogar. O mesmo não acontecera com o tal sujeito, que, completamente bêbado, tentava vender alguns objetos pessoais, oferecendo-os a um e outro, sem sucesso.

Sem dúvida, a praça era a grande perdição de todo albergado da Fundação. Sentado ali, vendo todo aquele burburinho e já não me sentido mais parte integrante dele, me sentia aliviado; apesar de tudo, estava livre e com lucidez tentava retomar o meu caminho. Dali, eu seguia para o dormitório. Não sem antes tomar um prato de sopa, que ainda não dispensava. No dormitório, ia direto para o meu cantinho; com o tempo, todo albergado acabava elegendo um lugar para dormir todas as noites, evitava ter de ficar procurando um lugar para dormir a cada noite. Poucos se interessavam pelas camas, quase todas quebradas, preferiam dormir pelos cantos, usando tábuas e colchonetes, o que também gerava confusão: os melhores lugares eram disputados, praticamente, no tapa: quando alguém invadia o espaço do outro sempre acabava em briga. Momentos em que prevalecia a lei do mais forte; aquele que se impunha, acabava levando a melhor. Esse tipo de ocorrência se dava, salvo exceções, com os recém-chegados que, sem nada saberem, apossavam-se de lugares marcados e, na maioria das vezes, acabavam tendo de procurar outro canto para dormir. Quando a briga era entre dois “veteranos”, a coisa era um pouco mais complicada e, não raro, acabava com a intervenção de um plantonista, a quem cabia decidir quem tinha razão ou mesmo botar para fora como baderneiros e outras acusações, se assim entendesse.

O dormitório era dividido em zonas ou grupos: aqueles que tinham alguma identificação se juntavam e viviam como se fossem velhos conhecidos, o que se confirmava pelas conversas, pois alguns davam a entender que já se conheciam de suas passagens por prisões, outros albergues ou por outras cidades, quase sempre na mesma situação. Destacavam os grupos que se juntavam para praticar pequenos furtos e os travestis, que eram a verdadeira diversão do dormitório e, com seus ataques de frescura faziam a alegria de todos, principalmente quando entabulavam, uns com os outros, conversas fantasiosas em que se faziam passar por mulheres ricas e famosas hospedadas em hotéis de luxo que, nesse caso, era o próprio albergue. Por outro lado, deles também vinha o fato mais alarmante; uma vez que homens e mulheres dificilmente se encontrassem dentro do albergue, as acomodações eram separadas, os travestis eram a opção de sexo dentro do dormitório. Quando apagavam as luzes, eles faziam a festa; havia uma verdadeira rede de prostituição, eles “atendiam” a muitos clientes por noite. Tudo, eu acredito, sem nenhuma preocupação com contágio de doenças venéreas ou mesmo com a AIDS, que, naquele período, vitimava impiedosamente ricos e pobres, famosos e desconhecidos; na verdade, alguns travestis já aparentavam estar doentes. Muitos se prostituíam abertamente, explorados por uma espécie de gigolô, que agenciava os encontros. Pelas conversas, também ficava claro que a maioria fazia ponto nas chamadas  “pistas” da cidade, ou seja,  as ruas e beiras de praia, para onde dizia ir aos finais de semana. Entretanto, a maior ameaça ainda estava por chegar e ela atenderia pelo apelido de Ruço, um sujeito muito mal-encarado que apareceu de uma hora para outra e passou a chefiar uma espécie de gangue dentro do dormitório. No meio da madrugada, eles saiam de suas camas, enrolados em cobertores – o que, no escuro, os transformavam em figuras assustadoras –, e afanavam o que encontravam pela frente. Era comum ouvir gritos de “pega o ladrão”, seguido de muito tumulto e uma vítima de cara marcada no outro dia; além de roubar, a gangue fazia pequenos acertos de contas com os seus desafetos ou com os desafetos de seus protegidos. No meio disso, eu tentava fingir normalidade, e, mesmo com o barulho de vários rádios, ligados em estações diferentes, tentava dormir; o dia seguinte não tardaria chegar. 

 

 

 

Capítulo 8

 

TENSÃO E MEDO

 

Entrar toda noite no albergue passou a ser, acima de tudo, um ato de coragem; a partir do momento em que se cruzava o portão de entrada dava-se se início a uma verdadeira prova de fogo: sobreviver ali, a cada noite, não era tarefa das mais fáceis: começava com o contato, impossível de ser evitado, com os  funcionários e se estendia ao convívio com os colegas albergados, principalmente dentro do dormitório, onde o fortalecimento das gangs era flagrante. O grande líder era o recém-chegado Ruço – uma figura aloirada que tinha acabado de sair de um presídio do Rio –, transformado no verdadeiro rei do pedaço, a quem todos tinham respeito: ele dava ordens e ditava regras. Isso proporcionava a ele algumas mordomias, como cama especial e lugares marcados nas filas, por exemplo. As rondas noturnas se intensificaram e comecei a temer que algo de ruim me acontecesse, pois eles eram muito bem informados de tudo o que acontecia dentro e fora do albergue, quem trabalhava ou tinha algum dinheiro, coisas de valor, sabiam tudo. Através dessas informações, escolhiam suas vítimas e partiam para o ataque. Primeiramente, eles tentavam uma aproximação na base da malandragem, fazendo-se de amigos da vítima; outra tática era a da marcação cerrada: passavam o tempo todo tentando atacar e, num descuido, davam o bote. Por isso, não era difícil imaginar que soubessem que eu trabalhava e que, portanto, tinha algum dinheiro. Isso era tudo o que eles queriam. Outro dado que pesava contra mim era o fato de eu ficar isolado de todos, não ter amizade com nenhum grupo em especial; sempre sozinho e calado no meu canto, eu era uma vítima em potencial. Isso me deixava muito tenso. E, por guardar comigo todo o dinheiro que vinham juntando para sair dali, passava as noites praticamente em claro, fumando um cigarro atrás do outro, para evitar que algo realmente acontecesse. A tensão aumentou depois da noite em que acordei com um cara mexendo nas minhas coisas. Lembro que fiz um movimento e ele desapareceu no escuro. Apesar de, pela manhã, não ter dado pela falta de nada, não deixou de ser um aviso. Naquele dia mesmo, resolvi que procuraria uma agência bancária para abrir uma conta-corrente, mas esbarrei em tanta burocracia que acabei tendo de desistir da ideia. O jeito foi apelar para pequenos truques: na praça, segurava bem meus pertences e, no dormitório, para minha segurança, colocava as minhas coisas entre o colchonete e a tábua e dormia por cima; não conseguia conceber a possibilidade de passar o dia inteiro trabalhando na obra para entregar tudo para algum vagabundo. Na obra também acontecia de roubarem dinheiro e pertences um do outro e, como eu andava com minhas economias na mochila, tinha de ficar bastante atento o tempo todo, ou seja, não tinha sossego.

A única coisa que me deixava animado por essa época era a peça de teatro, um monólogo, que eu estava escrevendo: a história de José da Silva Severino, um nordestino que deixou sua terra natal e veio para Rio de Janeiro em busca de trabalho e de melhores condições de vida. Cheio de sonhos, ele acaba se decepcionando, mais tarde se torna um soldado do tráfico. Uma história nem tão original assim que, para escrever, eu tinha colhido subsídios no convívio com pessoas que viviam experiências parecidas e também usava as minhas próprias vivências. No final, Zé, como o personagem é chamado, trai os companheiros e resolve virar um traficante cheio de poderes que dá ordens a todos, faz e acontece, ou seja, um homem simples tentando dar o seu grito de liberdade, livrar-se do opressor, mas tornando-se um deles. Descoberta a traição, Zé é preso num cativeiro e condenado à morte por seus comparsas, e é durante o período que vai da prisão até sua execução que a peça se passa. Em pouco mais de uma hora, ele fala de si, jura inocência, pede clemência e passa sua vida a limpo.

Como já mencionei, eu sou ator profissional e, além de atuar, sempre gostei de escrever. Já tinha várias peças escritas, sendo que algumas até acabaram se perdendo por causa das minhas constantes e mal planejadas mudanças. A ideia inicial era escrever um livro, cheguei a começar esboçar alguma coisa e fiz muitas anotações lá mesmo no dormitório do albergue, enquanto as luzes eram mantidas acesas, o que despertava a curiosidade de todos e me fazia sentir um verdadeiro Graciliano Ramos quando escreveu sua maravilhosa obra, “Memórias do Cárcere”. Graciliano Ramos, na verdade, com a cara do Carlos Vereza, que o interpretou magistralmente na adaptação do livro feita para o cinema, sob a direção do Nelson Pereira dos Santos. Acabei desistindo de escrever o livro por achar a realidade de escritor muito distante. Escrever a peça me pareceu algo mais próximo da realidade que eu vivia no momento; sentia uma grande necessidade de botar para fora tudo aquilo que estava me acontecendo e a peça seria esse veículo; livro precisaria de uma editora, muito dinheiro e coisa e tal, teatro se faz em qualquer lugar e sem depender de tantos detalhes, pelo menos, eu acreditava que fosse assim.

Depois de pronta a peça, eu fiz uma leitura para o pessoal da obra e eles, que já estavam muito curiosos, gostaram. Aproveitava o horário de almoço para escrever e eles sempre perguntavam o que era aquilo que eu tanto escrevia. Na verdade, eu não tinha lugar certo para escrever, podia ser na obra, num banco de praça, ou no próprio dormitório, era só ter uma oportunidade, pegava papel, caneta e começava.

Então, passei a pensar numa oportunidade de apresentá-la num teatro de verdade. Fazia muito tempo que eu não pisava num palco. A última vez foi em Belo Horizonte, vivendo o Repórter da peça “A menina e o vento”, de Maria Clara Machado, com direção do Alexandre Colla, exibida no Espaço Crepúsculo dos Deuses, uma montagem do grupo Experimental Cênico e Companhia de Estrelas, formado logo após a minha formatura no NET, em que convivia com atores como Toninho Leite, Débora Lacerda, Cordélia Corrêa, os irmãos Eduardo e Olegário Amorim e tantos outros. Dessa vez, era diferente; não era mais o ator ingênuo que acreditava que um dia iria ser tão famoso quanto um Antônio Fagundes ou um Paulo Autran, tinha passado poucas e boas e, embora não tivesse perdido de todo a esperança no futuro, sabia que não podia me dar ao luxo de ter grandes ilusões, precisava botar os pés no chão, mas como, se eu precisava sonhar? 

O resultado do texto foi uma peça cheia de vigor, um verdadeiro grito em favor dos excluídos, como eu era naquele momento, uma forma de protesto e denúncia; o Zé da Silva era eu, os albergados da Fundação Leão XIII, todo mundo que estivesse à margem e precisasse falar e se fazer ouvido. Comecei a ensaiar o texto usando o mesmo esquema que usei para escrevê-la, ou seja, ensaiava ao ar livre nas praças, na obra, no dormitório do albergue, enfim, onde desse. Sempre contando com a ajuda de um albergado de nome Manoel, um sergipano feioso, de mais de dois metros de altura, que se aproximou de mim quando soube que eu gostava de teatro como ele; aficionado por Shakespeare, ele vivia declamando o famoso monólogo da peça “Hamlet”, e falava horas sobre esse ou aquele personagem ou peça do bardo. Por vezes, parecia um tanto perturbado, mas sua companhia era de grande utilidade, pois acompanhava tudo e, na fase de decorar o texto, era quem ajudava quando me perdia, enfim, guardadas as devidas proporções, uma espécie de diretor.

Se por um lado eu estava animado com a peça, por outro continuava vivendo a mesma rotina. A vida dentro do albergue piorava a cada dia e cheguei à conclusão de que era impossível continuar lá. Ouvi dizer que a Fundação tinha outro albergue e que era melhor que o da Praça da Harmonia. Diziam que lá cada um tinha quarto separado e que era destinado somente àqueles que trabalhavam. Com base nessas informações, procurei a assistente social; as informações davam conta de que caberia a ela fazer a minha transferência. Fiz o pedido, mas ela, embora tenha confirmado a existência do albergue, disse que, para ser transferido, eu teria de estar trabalhando de carteira-assinada, o que não era o meu caso, portanto, nada feito. Diante dessa negativa, resolvi que iria alugar um quatro, porém todos que encontrei exigiam três meses de depósito e o meu dinheiro ainda não dava para isso.

Na obra, os desmandos do Paulista e seu sócio aumentavam a cada dia. Toda sexta-feira era uma tarefa árdua conseguir receber a semana trabalhada, pois sempre havia algum senão: um dia que não fora apontado, uma quentinha a mais sendo cobrada e coisas desse nível, por outro lado, a maioria dos peões já estava perdendo a paciência e, nesses momentos, partia para a ignorância, chegando a ameaçar o Paulista e seu sócio.  Muitos iam receber dispostos a qualquer coisa e se muniam, muitas vezes, das próprias ferramentas para intimidar os dois.  Resolvi que não dava mais, precisava arrumar outro lugar para trabalhar e foi então que caí nas garras de dona Jandira, uma mulher de meia-idade, que era chamada de a “gata” da obra de reforma da Rua Uruguaiana: do espeto para a brasa, literalmente. Ela era igual ou pior do que o Paulista.  Apesar disso, fiquei trabalhando com ela um bom tempo. Quando a obra da Rua Uruguaiana acabou fui, com ela, para a Praça Noronha, perto da Central do Brasil, na Avenida Presidente Vargas. Se os trabalhadores da Praça Paris ficavam o tempo inteiro achacando os transeuntes, pedindo dinheiro para comprar cachaça, os da Praça Noronha faziam o mesmo, mas para subirem até o morro para buscar cocaína. Depois de “cheirados”, ficavam destemidos e perigosos.

Eram visíveis as marcas que a vida na rua, ou mesmo no albergue, deixava nas pessoas. Uns pareciam mais fortes e, meio tontamente, tentavam se reequilibrar; outros adotavam a mendicância como meio de  vida. Nesses casos, a loucura vinha logo. Albergados que chegavam normais, com as quais cheguei a travar algum tipo de contato, tempos depois, eram incapazes de me reconhecer quando eu tentava falar com eles. Em certos casos, demonstravam estar totalmente desequilibrados. Caso do rapaz negro e franzino que reapareceu na praça com o corpo, principalmente as costas, em carne viva; o  conhecia dali e seu estado me impressionou muito. Fui falar com ele e, embora não tivesse me reconhecido, contou que estava dormindo na praça e, no meio da noite, acordou com as roupas em chamas. Tudo o que disse ter visto foi um carro se arrancando em alta velocidade. Por sorte, recebeu socorro de pessoas da rua, que o levaram até o hospital Souza Aguiar. Segundo ele, havia uma gangue rondando a área jogando álcool e ateando fogo em quem encontrasse dormindo na rua. Achei difícil acreditar que alguém tivesse coragem de fazer uma barbaridade daquelas com seu semelhante, mas ele estava ali na minha frente para provar que sim. Dias depois, sua história se confirmaria com outro caso. Dessa vez, aconteceu próximo ao albergue e os gritos de pavor de um homem foram ouvidos por todos. Alguns albergados, que subiram nas janelas, disseram ter visto o homem queimar vivo. Não havia dúvidas de que o rapaz tinha falado a verdade, existia mesmo uma turma de incendiários rondando o albergue, não tinha como negar, o terror estava instalado dentro e fora do albergue.

Vivia dias de muita tensão e medo. As noites passadas sem dormir me deixavam com os nervos à flor da pele, e até a ideia da peça já não me deixava animado; começava a questionar sobre o que estava fazendo ali, pensava em abandonar tudo e voltar para casa, em Minas. Fazia tanto tempo que eu não entrava em contato com a família que nem tinha mais certeza se teria mesmo para onde voltar. Para completar o quadro, caí doente: fui abatido por uma forte gripe causada, em parte, por meu estado psicológico, também pelo fato de muitas vezes ser obrigado a trabalhar debaixo de chuva na obra; quando começava a chover, quem parasse de trabalhar tinha o dia cortado. Para evitar que isso acontecesse, eu permanecia trabalhando. E o resultado estava ali: uma gripe forte e uma inflamação num  dente. Era domingo e tive o dia inteiro para me tratar com remédios receitados por balconistas de farmácias, na esperança de estar inteiro na segunda-feira. Pelo contrário, acordei pior. Não tive condições de ir trabalhar. Como não podia permanecer no albergue, fui para rua, cheio de dores e com muita febre. Quando me senti um pouco melhor, decidi ir até o outro albergue da Fundação. Há dias tinha decidido que o procuraria por minha própria conta, sem depender da assistente social, pois concluíra que ela não estava nem um pouco interessada em me ajudar. 

Indaguei sobre o endereço e acabei descobrindo que ficava numa rua próxima à Praça Tiradentes, no centro do Rio. E lá fui eu me arrastando, mas com alguma esperança. Ao chegar, fui informado de que a assistente social só atendia na parte da tarde. Como não tinha nada para fazer naquele dia, resolvi esperar. Por volta das duas da tarde, ela chegou. Depois de uma pequena entrevista, onde descobri que seu nome era Isabel Cristina, ela  me disse que tinha vagas, dado que afirmou ter comunicado ao albergue da Praça da Harmonia há vários dias. Falei que não trabalhava de carteira-assinada e ela, contrariando a assistente social Renê, disse que a casa existia exatamente para acolher trabalhadores informais como camelôs, lavadores de carro e catadores de papel que não tivessem moradias ou que morassem em áreas distantes do local de trabalho. Foi a primeira vez que ouvi o termo “Projeto Casa de Acolhida”, nome pelo qual a casa era conhecida. Em seguida, para minha alegria, ficou acertada a minha transferência. O prazo de permanência era de seis meses, tempo que eu teria, dependendo do meu comportamento, para resolver meu problema de moradia. Mais uma vez, achei que era tempo demais, mas resolvi não fazer nenhum tipo de comentário do qual viesse a me arrepender, pois tinha aprendido a ser mais cauteloso.

A assistente social me informou sobre o funcionamento da casa e fez questão de dizer que o local não era um albergue como o albergue da Harmonia: os horários de entrada e saída, os horários de refeições, eram oferecidos jantar e café da manhã, eu poderia lavar roupas, tomar banhos e tudo o mais, mas não poderia levar mulheres nem receber visitas, bebidas também eram proibidas. Para finalizar, perguntou sobre meu estado de saúde, dizendo que desejava que me recuperasse logo e que esperava que eu adaptasse bem às normas da casa, o que me livraria de ter problemas.

Voltei ao albergue da Harmonia para pegar as minhas coisas e quando avisei à assistente social Renê que estava saindo, ela não se deu ao trabalho de perguntar para onde eu estava indo. Mesmo assim, fiz questão dizer, pois tinha um recado da assistente social Isabel, que pediu que eu comunicasse a existência de outras vagas. Ela fingiu certa surpresa e eu saí da sala, depois de agradecer por tudo que tinha feito por mim naqueles dias. Dali, eu fui para o bagageiro pegar as minhas bolsas. A chance de sair de lá me deixou muito animado. Não sabia direito o que iria encontrar pela frente, mas estava confiante; o que quer que fosse, com certeza, seria muito melhor do aquele lugar. Quando cruzei o portão, cheguei a ficar emocionado. Afinal, estava saindo, após dois meses da minha chegada. Para ser exato, foram setenta dias. Houve momentos em que pensei que seria impossível sair dali, que ficaria para sempre naquele inferno. Sem me despedir de ninguém, atravessei a rua e caminhei para o lado da Avenida Rodrigues Alves, onde peguei o ônibus Madureira/Praça Tiradentes. Durante o trajeto, evitei olhar para trás. Na minha cabeça, um ensinamento do mestre Jesus Cristo: “Aquele que bota a mão no arado e olha para trás não é digno de mim”. Ao desembarcar na Praça Tiradentes, atravessei a rua  me desviando dos carros e, apesar do meu estado de saúde, não demorei a chegar à Rua Dom Pedro I,  28, endereço da casa, por volta das cinco horas. Fui direto ao plantonista, um rapaz gordo e alourado, de uns trinta e poucos anos, que se apresentou como Gaspar, se mostrou bastante camarada e informou que eu iria ficar no quarto quatro, como a assistente social já havia dito. Informou também que os quartos eram abertos às seis horas da tarde, mas que ele, por deliberação própria, abria mais cedo. Mesmo de manhã, quando o horário de deixar o quarto era às oito horas, ele disse ser mais tolerante.

- Sou camarada com os internos. O nego não pode é vacilar, disse abrindo o quarto, que era relativamente pequeno, mas cabiam três camas-beliche, com três andares as duas das laterais e com dois a do meio, perfazendo um total de oito camas, o que me fez crer que ali moravam oito pessoas, desmentindo a expectativa fantasiosa de que eu teria um quarto só para mim.

As camas tomavam quase todo o espaço, dificultando a locomoção, provavelmente por isso, o plantonista ficou do lado de fora, parado na porta, de onde apontou a cama em que eu deveria ficar: a única  com o colchão à vista, dando a entender que estava vazia. Percebi que não  tinha um local para guardar as bolsas e perguntei se existia algum lugar fora dali para isso; fui informado que não, eu teria de dar o meu jeito. Como minha cama seria a primeira debaixo para cima, resolvi enfiar tudo debaixo dela. O homem saiu e voltou com o que seria o meu enxoval na casa – colcha, lençol, fronha, travesseiro e toalha de banho, tudo novo e branco –, e me entregou dizendo que a partir daquele momento ficariam sob a minha responsabilidade, eu tinha de manter tudo limpo e bem cuidado. Depois disso, foi embora dizendo que eu poderia descansar até a hora da janta. Nessa hora, deveria procurá-lo para assinar o livro de presença, regra obrigatória da casa.

Gostei da possibilidade de poder descansar um pouco, aquele tinha sido um dia muito puxado, porém, a curiosidade de conhecer o lugar onde ficaria morando a partir daquele dia me fez sair pela casa fazendo uma espécie de reconhecimento do local. À primeira vista, tudo o que se via era um estacionamento de carros e um galpão de madeira do lado esquerdo, lembrando um acampamento de trabalhadores, desses que comumente se vê em obras, mas dividido em cinco quartos-dormitórios, numerados de um a cinco, com capacidade para abrigar quarenta homens, uma cozinha, uma área aberta, usada como refeitório, outra com vários lavatórios pequenos e tanques para lavar roupa, havia ainda a sala da administração e serviço social, uma despensa, além dos banheiros e chuveiros, que eram separados, o piso era de cimento e a área em volta coberta por uma camada de brita, o que provocava certo barulho quando se caminhava sobre ela, tudo isso cercado por uma frágil cerca de arame liso, com vigas de cimento.

Feito o reconhecimento do local, tratei de me apresentar ao restante do pessoal. Naquela hora, praticamente, só os funcionários estavam presentes. As cozinheiras e o plantonista, num primeiro momento, pareceram amáveis e cordiais, diferentemente dos funcionários do albergue da Praça da Harmonia. Esse fato, por si, já me deixava contente, mas a limpeza do local chegou mesmo a me deixar impressionado; tudo era limpo e cada coisa parecia estar em seu devido lugar, o que me fez pensar em tomar um banho para tentar me adequar ao ambiente.

O chuveiro frio não foi  problema; no albergue da Harmonia e na obra não eram diferente. Tomei um banho como há muito não tomava. Na verdade, lavei  o corpo e a alma. Precisava me livrar daquele cheiro que parecia ter me impregnado para sempre. No albergue, eu não percebia tanto, mas, agora, num lugar limpo, se fazia notar.

Um pouco mais tarde, os internos começaram a chegar – interno era o termo usado para designar os moradores da casa – e eram cerca de trinta e tantos homens de idades variadas. Alguns eram meus conhecidos da Harmonia, como o Geraldo. Perguntei a ele sobre seu emprego e ele confirmou que estava trabalhando, porém não davam moradia, como tinham me dito. Não quis muito papo comigo, creio que por causa da minha aparência, que a gripe e uma inflamação dentária castigaram tanto.

Por volta de sete horas, foi servida uma sopa, que não estava lá grande coisa, gerando reclamação por parte dos internos. Diante disso, as cozinheiras afirmaram que estavam fazendo o que podiam, pois não havia muito suprimento. No primeiro dia não quis tomar conhecimento dos problemas que deveriam existir na casa, queria apenas ver o lado bom, o importante é que eu tinha saído do Albergue João XXIII e estava num lugar que me parecia ser melhor, mais condizente comigo. Fui dormir cedo e, então, pela primeira vez em quase três meses, pude deitar numa cama de verdade. O enxoval novo dava um toque de conforto e limpeza que eu parecia já ter esquecido que existisse, reforçando a impressão de que, nos últimos tempos, eu estivera vivendo num inferno. Dormi ciente de que, a partir daquele dia, começava um novo capítulo da minha passagem pela instituição.

        

 

 

Capítulo 9

 

UM GATO ENTRE OS POMBOS


 

Com o problema de moradia resolvido e a saúde recuperada, pude retomar alguns projetos que estavam esquecidos. A peça foi um deles; a estrutura do Projeto Casa de Acolhida permitiu que eu voltasse a ensaiá-la, e o local escolhido foi o refeitório, um espaço quase todo ocupado por uma enorme mesa de madeira, usada para as refeições. Por essa época, encontrei um título que julguei ideal: “Saudades da China”, uma referência ao dito “você não vai conseguir isso aqui nem na China”, que, embora achasse um tanto quanto subjetivo, vinha de encontro ao que eu estava procurando. Novamente, me enchi  de entusiasmo e fantasias, aquela velha história de que a peça seria uma forma de protesto e que conseguiria chamar atenção para a causa dos desvalidos. Uma vez que os ensaios foram retomados, cresceu a necessidade de encontrar um teatro para levar o espetáculo, que, agora, estava sob minha própria direção; um verdadeiro três em um: texto, interpretação e direção. Resolvi procurar o Teatro Procópio Ferreira, em Nova Iguaçu, e não foi difícil convencer sua administradora a alugá-lo durante um final de semana. As apresentações foram marcadas para uma sexta-feira e um domingo, dias 28 e 30 de junho de 1991.

Não calculei a trabalheira que essa empreitada acarretaria. Foi uma loucura em que só pude contar com a ajuda de Cláudia, uma jovem de uns vinte poucos anos que conheci na rádio Continental; chegou a trabalhar com a Deise Borges e também levou calote, mas diferentemente de mim, tinha a estrutura de sua família e, por ser estudante de jornalismo, acabou sendo contratada pela rádio Continental, como estagiária. Pessoa bastante generosa, meu único contato com o mundo dito normal naqueles, me ajudava como podia, inclusive, quando tentei arranjar emprego e precisei deixar endereço para contato, me autorizou a dar o de sua casa, e foi através dela que datilografei o texto da peça, usando uma máquina da rádio Continental. T Também fez a voz da Dorinha – personagem que surge na peça quando Zé lê a carta da noiva que julgava estar esperando por ele em sua terra natal –, e conseguiu muita coisa para a peça: o aparelho de som, que não havia no teatro, convenceu o Ronald, operador de som da rádio Continental, a gravar a fita do espetáculo, músicas e sonoplastia, e ajudou na divulgação. Ronald acabou, por sua vez, colaborando mais; gravou a voz do personagem Rato, o amigo de Zé da Silva Severino que o trai. Chegado o grande dia, faltei ao trabalho na obra para cuidar da estreia. Quando Cláudia chegou, me encontrou sentado no camarim; tinha feito um ensaio e estava descansando. As horas passavam e ninguém aparecia. Vendo minha decepção, ela foi até o pátio da escola, que funcionava no local, e trouxe dois alunos que se dispuseram a assistir ao espetáculo. Mais tarde chegaria Alberto, fotografo amigo dela, a única pessoa que se interessou realmente em ver a peça. No final, depois de Cláudia se dividir nas funções de operadora de luz e sonoplasta, tudo acabou saindo bem; os dois alunos recrutados se empolgaram com o espetáculo, e um deles fez um pequeno discurso ressaltando minha coragem e, segundo suas próprias palavras, o meu talento. Agradeci e tratei de voltar para o Rio de Janeiro. No dia seguinte, teria de estar inteiro para enfrentar a maratona de doze horas no Jornal O Dia, onde continuava trabalhando como carregador, motivo pelo qual não agendei espetáculo para o sábado.

Apesar de um tanto decepcionado, tentei me animar; se aquele primeiro dia não tinha sido bom, restava o domingo. Quem sabe não teria mais sorte? Ledo engano: foi ainda pior; não apareceu ninguém, nem mesmo a Cláudia, que disse, depois, que tivera algum  problema que a impedira de ir. Mesmo assim, permaneci no teatro alimentando alguma esperança. Do lado de fora, uma chuva fina fazia com que a noite ficasse fria. Sentado na plateia, eu olhava para a pintura do retrato do ator Procópio Ferreira, que dá nome ao teatro, e o invejei. Queria ter a sorte que ele teve de ser reconhecido pelo seu trabalho e dar nome a um teatro, ainda que fosse malcuidado e perdido num lugar ermo. Ao lado do retrato, nomes de outros atores do passado como Itália Fausta, João Caetano, Alda Garrido e outros, numa homenagem simples, mas tocante. Só então percebi o quanto tinha sido pretensioso. Quando peguei o trem de volta para o Rio, tive a sensação de que tinha sonhado demais.

Não demorou muito para que eu ficasse inteirado de todo o funcionamento do Projeto Casa de Acolhida; já conhecia todos os funcionários: as duas assistentes sociais, a Isabel, minha conhecida desde o primeiro dia, a Blandina, e a estagiaria Vânia, que dividiam uma sala com dois funcionários burocráticos, que eu só vi nos primeiros dias; os plantonistas e as cozinheiras trabalhavam em grupos fixos, cerca de quatro, sempre um plantonista e duas cozinheiras, que trabalhavam em turnos de vinte e quatro por setenta e duas horas, eram os que tinham mais contato com os internos, uns permitiam maior aproximação e outros faziam questão de manter uma boa distância; o coordenador, um senhor de uns sessenta e poucos anos, chamado José Luís, que chegava sempre na hora em que a sopa estava sendo servida e saía logo em seguida, na maioria das vezes, sem nada dizer.

Eu dividia o quarto com Roberto, uma espécie de líder, Juracy, um paulista caladão, Fábio, um nortista vendedor de biscoitos, Daniel, um nordestino, China, um guardador de carros,  Sérgio, um mineiro, que presenciei roubar uma bicicleta na Praça da Harmonia, e outro, que não cheguei a guardar o nome, que foi embora nos primeiros dias, pois faria uma cirurgia, em São Paulo; no dia que partiu despediu-se demoradamente de todos. O convívio não era de todo ruim, apenas sofria as agruras de ser novato; todos tinham alguma coisa a dizer sobre como me comportar no quarto, uma vez que haviam criado algumas normas: era proibido fumar, por causa do risco de pegar fogo na madeira, depois das dez horas não era permitido acender a luz, ouvir rádio, dentre outras coisas: normas que eles não seguiam, mas que faziam questão de que eu seguisse. 

No que dizia respeito aos internos dos outros quartos houve um estranhamento inicial, mas pouco a pouco fui conhecendo um e outro e me tornando aceito. Também aos poucos, conhecia a casa e os seus problemas; sim, eles existiam. Constatação que me fazia crer que eu tinha feito um julgamento apressado. Achei que ali era um paraíso e a cada dia descobria o quanto estava enganado; embora estivesse longe de se comparar com o albergue da Praça da Harmonia, era possível notar algumas semelhanças. E isso ficou mais evidente num incidente entre um colega do meu quarto, o Roberto, e um plantonista que, para evitar qualquer problema, vou chamar de X: um belo dia, eu estava descansando no quarto quando o plantonista X chegou transtornado procurando o Roberto, que chegou logo após, muito bêbado. O que deu para entender, pela discussão, X acusava Roberto de estar dizendo que ele era “viado” e se envolvia com os internos. Ele confirmou a história, acrescentando que o surpreendera fazendo sexo oral em determinado interno na sala da administração. Aí as agressões tiveram início. X, que era mais forte, bateu muito no interno, apesar da intervenção dos presentes. Do quarto, a briga evoluiu para o lado de fora, chamando a atenção de toda a casa, e a briga só terminou quando todos se juntaram e afastaram o plantonista, que, a essa altura, mais parecia um animal selvagem. Roberto, sangrando muito, saiu do Projeto naquela noite mesmo.

O fato chamou a minha atenção para uma prática que havia ali: as expulsões. A partir daquele dia, muitos casos vieram a acontecer; geralmente, aconteciam durante a noite, eram mais comuns do que eu podia imaginar, e tanto podiam ser por problemas entre os internos ou  destes com os funcionários, como no caso do Roberto. Pela manhã, o caso era registrado e as assistentes sociais, quase sempre, optavam pela expulsão, o que me deixava bastante apreensivo; nunca sabia quando alguém iria cismar com a minha cara, além do mais, a cada expulsão, vinha outro interno para o lugar, uma nova pessoa nem sempre muito bem-vinda. Mesmo assim, dava para ir levando, porém, a chegada de um interno chamado Genílson trouxe sensíveis mudanças: era um rapaz de uns vinte e tantos anos, mulato, alto, articulado e muito falante. Logo fez amizade com todos e tornou-se uma pessoa popular, principalmente com os funcionários da casa, entre os plantonistas, em especial, dos quais se tornou companhia inseparável, o que fez com que tivesse privilégios e passasse a agir como verdadeiro plantonista; era comum vê-lo repreender internos e dar ordens a um e outro. Comigo não chegava a se meter, apesar de estar lotado no meu quarto; viera ocupar a vaga surgida com a expulsão do Roberto. No quarto cometeu um dos seus desatinos: numa noite, altas horas, quando todos dormiam, ele chegou fazendo o maior alarde e foi direto às camas do Sérgio e de outro interno de nome Paulo. Retirou-os debaixo de sopapos, acusando-os de serem os responsáveis pelos roubos que vinham acontecendo dentro do Projeto. Falava e espancava os dois, que não chegavam a oferecer resistência. O barulho atraiu a atenção de todos. Nessa hora, o plantonista, um senhor de nome Odilon, que dormia na sala da administração, foi chamado. Sérgio e Paulo juravam inocência, mas “o xerife” afirmava que eles eram ladrões e que deviam ser expulsos. O plantonista, muito sensatamente, ponderou que deviam esperar o dia seguinte para que as assistentes sociais resolvessem a questão. O autoproclamado plantonista concordou, mas decidiu que os acusados deveriam ter os seus pertences vasculhados para que se tentasse reaver os objetos roubados. É verdade que os roubos estavam acontecendo, as reclamações eram constantes, porém, revistados os pertences dos dois, nada foi encontrado. No entanto, Genílson, investido de seu poder, ordenou que eles desaparecessem dali, imediatamente, e, mesmo sendo madrugada, não tiveram outra saída senão obedecer.

Apesar das reclamações feitas à coordenadoria da casa e ao serviço social, ele continuou aterrorizando por muito tempo ainda. Aos poucos, se tornou uma pessoa malquista e temida pelos internos, sobretudo, por aqueles que frequentavam as reuniões que o serviço social fazia, semanalmente, na tentativa de buscar soluções para os problemas que surgiam e, naquele momento, era a falta de suprimentos para a sopa, o principal deles; acreditava-se que essa era, em muitos casos, a única refeição que a maioria fazia durante todo o dia, deixando claro que havia muitos desocupados na casa: internos que não tinham nenhuma renda. Isso desmentia a história de que só podia ficar na casa quem tivesse algum tipo de trabalho. Reunimo-nos várias vezes para tentar encontrar uma solução para a questão da alimentação. A sugestão era a de que se permitisse que as cozinheiras vendessem comida aos internos e que cada um pagasse mensalmente. A proposta foi descartada pelas assistentes sociais Isabel e Blandina, que trabalhavam em dias e horários alternados, mas nas reuniões estavam sempre presentes, pois acreditavam que era função da Fundação Leão XIII, no que eu concordava com elas, porém, os problemas iam muito além do fato de não haver comida: muitos internos eram alcoólatras, toxicômanos e até marginais perigosos. Semelhante ao que ocorria no albergue João XXIII, no Projeto também tinha aqueles que não estavam a fim de nada além de um lugar para se encostar ou se esconder. Eles eram, em sua maioria, homens de meia-idade cheios de vícios e problemas que estavam ali exatamente porque esses vícios terminaram por afastá-los de suas famílias: pais, irmãos, esposas, filhos.

Em tese, o Projeto Casa de Acolhida era muito bonito em seu ideal humanitário, entretanto, não tinha muita estrutura, era recente, tinha sido inaugurado em fevereiro de 1991, construído no final do mandato do governador Moreira Franco e o novo governo não sabia exatamente o que fazer com ele.

As reuniões passaram a ser de grande importância para a vida na casa. Vez ou outra se achava uma solução para algum problema que afligia a todos, o que fez com que passassem a ter um sentido maior: deixávamos de ser simples estranhos e íamos tornando-nos mais conhecidos uns dos outros. Foi numa dessas reuniões que surgiu a sugestão de que devíamos ter um aparelho de  televisão para que todos pudessem assistir à noite, antes de dormir. A ideia nasceu embalada pelo fato de que o plantonista Antônio levava um aparelho portátil nos seus plantões e a colocava no refeitório para todos assistirem. Grande parte se interessava em assistir telejornais, humorísticos, programas musicais, novelas e, principalmente, futebol. No dia do plantão do Antônio, o refeitório ficava lotado até tarde; nos outros dias, todos sentiam a falta do televisor. Por isso, decidiu-se que o melhor era comprar um aparelho e que isso seria feito através de uma coleta de dinheiro, ou seja, todos os internos contribuiriam. A decisão gerou polêmica: uns achavam que não ficariam na casa tempo bastante para desfrutar do aparelho; outros achavam que o aparelho deveria ser fornecido pela Fundação; e as próprias assistentes sociais viam aquilo com reserva. Mesmo assim, a “vaquinha” terminou por ser feita, não para comprar uma televisão nova, mas para consertar um aparelho velho que o coordenador José Luís doou. O conserto consistia na troca do tubo de imagem, que estava queimado e, como ali de louco e médico tinha de tudo, logo apareceu alguém que se disse entendido em eletrônica e ofereceu para trocar o tubo e fazer os reparos necessários. Coordenação feita pelo Paulo – morador do quarto um, que se despontava nas reuniões, quarenta e poucos anos, muito ligado às assistentes sociais e com fama de ser o interno mais respeitado da casa –, o tubo comprado, chegou o dia da instalação, porém o tesoureiro alegou necessidade de se ausentar e passou o encargo de gerenciar a troca para ninguém menos que o Genílson.

O técnico em eletrônica era um cara baixinho, de idade indefinida, que eu sempre via por ali. Cheguei a julgar que fosse um tanto perturbado dado ao fato de ter o hábito de conversar sozinho, também por ouvi-lo contar  que era caminhoneiro e sofrera um acidente em que teria perdido, além do caminhão, alguns familiares: as sequelas do acidente eram visíveis. Independente disso, a troca começou a ser feita, em cima da mesa do refeitório, sob o olhar de muitos curiosos. O homem parecia seguro naquilo que fazia e todos estavam ansiosos, afinal, ter uma televisão para assistir todas as noites seria quase um luxo, ainda que fosse preto e branco. Serviço pronto, hora de testar: todos se prepararam para o grande momento. O aparelho foi ligado e, simplesmente, explodiu: teve gente correndo para todo lado, pois como tudo aquilo era de madeira, existia o risco de incêndio. Felizmente, nada de pior aconteceu, no entanto, morria ali o sonho da televisão comunitária.

Além do susto, o pretenso técnico levou uma surra do Genílson, mais uma vez, agindo arbitrariamente. Apesar de toda a indignação que suas atitudes causavam em todos, ninguém fazia nada. Muitas vezes, essas arbitrariedades nem eram comunicadas ao serviço social, pois de nada adiantava, parecia que tinha ascendência sobre todos, sobretudo as cozinheiras, que diziam que ele era um bom-menino, e os plantonistas que deixavam agisse como bem entendesse, sem nada fazerem para impedir. Por esse período, ele arrumou um cachorro para, palavras suas, vigiar a casa. Confesso que achei a atitude descabida, mas a maioria entendia que um cachorro protegeria a casa de possíveis ladrões ou coisa parecida. O cachorro, preto, tipo fila, passou a conviver com a gente; logo desapareceu. Dias depois, um funcionário da casa, de nome Roberto, um funcionário do Projeto, sem uma função específica, acredito que nem ele mesmo sabia o que fazia na casa, só sei que passava o tempo inteiro bêbado, importunando seus colegas funcionários e os próprios internos, apareceu com o rosto todo coberto de umas marcas, que pareciam ter sido provocadas por mordidas. Correu o boato de que ele, muito embriagado, resolvera brincar com o cachorro e ele o atacara, mordendo-lhe o rosto e que essa seria a causa do desaparecimento do animal, entretanto, o verdadeiro motivo foi bem outro: havia um homem que vivia sentado na mesa do refeitório fazendo entalhe em madeira, o que deixava o local completamente sujo, fato que quase sempre gerava briga entre ele, os funcionários e mesmo os internos, que ficavam incomodados com sua constante presença. Mulato, ele tinha uns sessenta anos e atendia pelo apelido de Baiano, por causa de seu estado de origem, o que se confirmava quando se via o produto do seu trabalho, pois sempre retratava o lado velho de Salvador, capital da Bahia. Inicialmente, tive a impressão de que fosse interno também, mas logo essa impressão foi desmentida: ele fazia pose de pessoa importante; estava sempre vestido com um terno amarrotado, era íntimo dos funcionários e isso me levou a descobrir que se tratava de um ex-funcionário da Fundação Leão XIII, que fora afastado depois da mudança de governo e estava ali porque não tinha onde morar, no entanto, se negava a ser um interno como nós, embora as assistentes sociais vivessem no seu pé para que acertasse sua situação ou saísse dali de vez, mas não acontecia nem uma coisa nem outra, e ele permanecia sentado na mesa do refeitório dia e noite.

- Eu trabalhava junto com os “hôme”, não era um funcionariozinho qualquer não, falava ele para lembrar a todos de que já tivera muito poder na Fundação; geralmente, se inflamava nessas ocasiões.

Alguns internos e funcionários gostavam de vê-lo irritado e viviam provocando-o, quando ele dizia que se nós estávamos tomando sopa ou mesmo morando ali é porque ele deixava.

- Essa casa era para ser minha.

Com o tempo, tornou-se motivo de chacota de todos pelo fato de não ter o hábito de tomar banhos, foi perdendo a pose e passou a fazer amizades com os internos, particularmente, com o Genílson.  Curiosamente, eles eram sócios no negócio do cachorro, que, como ficou esclarecido, nunca foi do Projeto, tendo ficado ali somente enquanto fechavam sua venda. Esse foi o motivo de seu sumiço, pois Genílson o vendera. Até aí nada demais; um animal no Projeto representava uma boca a mais e a comida já era escassa para os próprios internos. Nesse caso, sua saída era uma notícia muito boa, pelo menos em minha opinião, porém, o negociante não dividiu o dinheiro da venda com o sócio e, com isso, nasceu uma  séria desavença entre eles; sem conseguir sua parte no dinheiro, Baiano jurou vingança: faria de tudo para que o interno expulso do Projeto.

Era fácil perceber que ali muitos usavam drogas, aliás, nas madrugadas, ela corria solta; chegavam a fazer vaquinha para comprar. Numa noite, depois de ser acordado por uma barulheira infernal vinda do lado de fora, vi quando um interno do quarto, o China, entrou, revirou suas coisas e saiu com uma arma dizendo que ia matar alguém. Não aguentando de curiosidade, e por estar acordado, fui ver o que estava acontecendo. Ao chegar, vi que o Neguinho, interno do quarto dois, chorava ajoelhado afirmando que tinha sido assaltado e levaram todo seu dinheiro. Numa questão de segundos, todos os internos estavam de pé. Sob o olhar de todos, China apontava a arma para a cabeça do Neguinho ameaçando atirar. Tentei entender o que estava acontecendo e descobri que o interno subira até um determinado morro para buscar cocaína, porém fora roubado.

- Você tá de caô, acusava China deixando claro que não acreditava na história.

Isso gerava toda aquela confusão, que podia terminar em morte, e que atraía cada vez mais gente. No meio de tudo, sem mais nem aquela, Baiano, que estava presente, desferiu um murro na cara do Genilson, gerando outra confusão. O plantonista foi chamado e Baiano exigiu que fosse registrada uma ocorrência:

- Genílson é o responsável por toda essa desordem; Neguinho subiu o morro pra buscar cocaína a mando dele, e isso tá trazendo perturbação pra dentro da casa, por isso, ele tem de ser punido.

Resultado: no outro dia, sem que ninguém esperasse, o “xerife” foi desligado do Projeto pelo serviço social e teve de ir embora. Ironicamente, dias antes, num domingo, ele aceitou Jesus, num culto realizado no refeitório, prometendo que a partir daquele dia ia mudar de vida. De uma forma não muito correta, mas bastante oportuna, estávamos livres dele.

- Pensou que podia me passar a perna, se deu mal, vociferou Baiano sentado na mesa do refeitório; quanto aos outros internos envolvidos na confusão, nada foi dito nem feito.

Apesar do insucesso da instalação do aparelho de televisão, as reuniões continuaram acontecendo com certa regularidade. Até porque, os problemas não paravam de aparecer; além da sopa, começou a faltar o café da manhã também. E não adiantava esperar que a Fundação mandasse algum suprimento, a falta era sentida noutras unidades consideradas mais essenciais.

Desde a posse do novo governo, a entidade estava sem um diretor e isso, diziam, tornava as coisas mais difíceis. Isso fez com que se pensasse numa saída, fora da Fundação, para o impasse: a solução veio do Paulo. Apesar de já estarmos no mês de julho, ele sugeriu que fizéssemos uma festa junina com o intuito de arrecadar fundos para comprar suprimento para a sopa e o café da manhã. A sugestão foi acatada por todos, com entusiasmo, e partimos para a organização. Paulo pretendia fazer uma festa grande, com muitas quadrilhas, barracas, bebidas, auto  falante, enfim, e chegou a batizá-la de “Arraial do Cachorro Cansado”, em referência a um bloco carnavalesco que existia no Flamengo. Em seus planos constava a possibilidade de conseguir apoio de fábricas de cerveja, como a Antártica e a Brahma, que emprestariam barracas, cadeiras, mesas etc. Foi também em busca de apoio que procuramos a RIOTUR, porque, segundo ele, eles nos ajudariam com os enfeites da rua e transporte dos integrantes das quadrilhas. Fomos – eu, as assistentes sociais Isabel e Blandina, Cláudio, interno do quarto cinco, Renato, interno do quarto um, e o Paulo – recebidos por um rapaz, gordo e alto, que se apresentou como responsável pela área de apoios da RIOTUR. A assistente social Isabel achou por bem falarmos um pouco de nós e do trabalho realizado pela Fundação.

- Fundação Leão XXIII? Sim! Acho que conheço. Não é aquela que cata mendigos na rua? foi o comentário que ouvimos.

Diante do exposto, ficou difícil argumentar. Isabel bem que tentou fazer o homem ver que  não era bem assim e tal e coisa, mas ele se apressou em dizer que não poderia fazer nada. Voltamos para o Projeto e lá ficamos sabendo que, da mesma forma, nada seria conseguido com as fábricas de cerveja, aliás, bebida alcoólica estava definitivamente fora de cogitação, devido ao fato de muitos ali serem dependentes de álcool. Talvez por isso, Paulo tenha pulado fora da organização da festa e do Projeto, não tendo sido mais visto por ali a partir daquele dia. Com seu misterioso desaparecimento, a comissão da festa ficou bastante reduzida. Basicamente, eu, Isabel e o Cláudio, um pernambucano falante, muito prestativo, que tinha chegado pouco depois de mim, e trabalhava entregando panfleto nas ruas. Juntos, percorremos o comércio das redondezas, pedindo prendas, e conseguimos bastante coisa. A Brahma emprestou alguns balcões e as barracas foram improvisadas. Na reta final, muitos internos colaboraram e o destaque foi para o Chagas, que era do quarto, mineiro, trabalhador de construção civil, responsável por quase toda ornamentação da festa; não poupou esforços para conseguir folhas de palmeira e até uma gambiarra para a iluminação. O som foi emprestado pelo Coordenador. Fizemos muitas e coloridas bandeirinhas de papel de seda. Cada quarto ficou responsável por uma barraca, que foram variadas. As cozinheiras fizeram salgadinhos para vender e um dos quartos optou pela venda de refrigerantes. Sugeri ao Fábio, morador do meu quarto, que colocasse uma barraca com um bingo, o serviço social optou por um bazar de roupas usadas, e apenas uma quadrilha apresentou-se, convidada pelo cozinheiro Chiquinho, único homem no meio de sete cozinheiras. A festa atraiu pessoas das redondezas e os funcionários levaram seus parentes e amigos. Tudo muito simples, mas com muita animação. Apenas um incidente marcou a noite: um dos convidados, um médico chamado Dr. Júlio, alegou que sua carteira, com dinheiro e documentos, tinha sido roubada.  Por não encontrá-la, ele chamou a polícia que, além de revistar todos os internos, fez com que mostrássemos os nossos pertences. Todas as malas e bolsas foram revistadas, sem  que nada fosse encontrado, o que gerou um grande constrangimento e apressou o fim da festa. Naquela noite todos dormiram com alguma coisa atravessada na garganta.

                    



Capítulo 10

 

O ENGAJAMENTO

 

 

Fazia mais de um mês que eu estava “morando” na Casa de Acolhida e sua infraestrutura me permitia levar uma vida quase normal; falando grosso modo era como se eu estivesse morando numa vaga. Diferentemente de muitos internos, que pagavam as cozinheiras para lavarem suas roupas, eu preferia cuidar das minhas, pessoalmente; era para isso que existiam os tanques e a água em abundância. Por essa época, tinha recuperado totalmente a saúde e comemorava o fato de estar cerca de dois meses sem fumar. Depois de passar alguns anos fumando, era a primeira vez que decidia parar: a decisão fora tomada durante os dias em que estive fortemente gripado e, passado o nervosismo dos primeiros dias, já me sentia melhor e acostumando com a ideia de não fumar nunca mais, apesar do fato de que quase todos à minha volta fossem fumantes inveterados. Despeito todos os incidentes que aconteciam diariamente, me sentia mais tranquilo e traçava alguns planos para o futuro, entre eles, abandonar o serviço na obra para arranjar uma ocupação de carteira-assinada na minha área, ou seja, num escritório de contabilidade. No entanto, após pensar um pouco, julguei que ainda precisava juntar um pouco mais de dinheiro. Apresentar a peça no teatro de Nova Iguaçu acabou custando mais do que eu imaginara, pois, além de ter amargado toda aquela decepção, precisei desembolsar algum dinheiro para pagar o aluguel do espaço; somado ao fato de ter ficado uns dias parado, por causa da gripe e da inflamação dentária, o resultado era que eu ainda não podia deixar a obra, tive de me conformar e continuar a enfrentar a vida de peão de obra na reforma da Praça Noronha.

Após a festa junina, houve uma aproximação maior dos internos com as assistentes sociais; os dias trabalhados juntos na organização da festa permitiram que passasse a existir uma relação de confiança entre as duas partes e o resultado foi benéfico para ambos. Todavia, bem diferente da expectativa inicial, o dinheiro arrecadado não foi lá grande coisa. Mesmo assim, Isabel fez uma lista de prioridades e eu fui com ela fazer as compras. Deu para comprar apenas alguns objetos que estavam faltando: copos, pratos, garfos, colheres, cestas de lixo; os gêneros alimentícios ficaram de fora. 

O Projeto – nome mais usado para referir-se a casa – não tinha ainda uma linha de ação definida. A própria Fundação, como afirmavam os funcionários, sobretudo as assistentes sociais, nunca tinha trabalhado com aquele tipo de casa, ou seja, estavam tateando no escuro. As assistentes sociais, cheias de boas intenções, buscavam uma maneira de melhor conduzir as coisas, porém, isso era ameaçado, tanto pela falta de estrutura administrativa, quanto pelo próprio interno que, apesar de ter ali uma maneira relativamente decente de reconstruir sua vida, tinha interesse de que prosperasse, mas, sem regras muito bem definidas a seguir, agia como bem entendia criando, com isso, um ambiente confuso. Foi daí que nasceu a necessidade de que se fizesse um trabalho efetivo para que as coisas pudessem de fato funcionar melhor. Tudo começou dentro dos quartos com a escolha, entre os seus ocupantes, de  uma espécie de líder, que teria a função de ser uma ponte entre o ocupante do quarto e a casa. As eleições para escolha dos líderes ocorreram sem problema; essas lideranças, em muitos casos, eram naturais: como era o caso do Valdecir, do quarto dois, o Chagas, do quarto um, e o Cláudio do quarto cinco. No quarto quatro, para minha surpresa, o escolhido fui eu, embora achasse que o Fábio, o vendedor de biscoitos, fosse o mais indicado. Apenas o quarto três, em que estavam os internos mais problemáticos, não escolheu nenhum líder. Logo em seguida, foi escolhida uma comissão para elaborar um estatuto de funcionamento para a casa. Mais uma vez, fui um dos escolhidos, juntamente com o pernambucano Cláudio. Também faziam parte da comissão as duas assistentes sociais, o plantonista Gaspar e a cozinheira Aparecida. Durante alguns dias, nos reunimos e no final o estatuto estava pronto. Era muito simples e nele constavam coisas básicas, como hora de entrada e saída, horário das refeições, e do uso das partes comuns, como chuveiros, banheiros e os tanques de lavar roupa etc. Regras que, na verdade, já existiam, mas que não eram cumpridas. Discutimos também alguns pontos polêmicos, como a proibição de vender comida ou qualquer outra mercadoria dentro do Projeto, e fixamos o horário limite para que o interno se recolhesse ao seu quarto: às vinte e duas horas. A assistente social Isabel propôs a criação de uma carteirinha de identificação do interno em que constaria foto, nome do portador, os números do quarto e da cama, além da data que o portador dera entrada e a data do futuro desligamento. Alguns tópicos geraram muita discussão e o caso da venda de comida pelas cozinheiras dona Maria e dona Terezinha foi um deles; a maioria batia na tecla de que essa função era da Fundação. As expulsões foram outro ponto de grande polêmica. Sobre elas me debati muito; embora as julgasse necessárias, achava que eram também, muitas vezes, arbitrárias, pois não se chegava a apurar, com clareza, as denúncias e ocorrências, tudo era decidido no calor do momento, mas não obtive sucesso. Julgaram que eu estava advogando em causa própria, uma vez que também poderia ser expulso como qualquer outro. Não podia duvidar que isso acontecesse; bastaria me envolver numa confusão com algum funcionário e, pronto, estava na rua: entre a palavra de um funcionário e a de um interno, prevalecia a do funcionário.

Com o estatuto pronto, chegou a hora de colocá-lo em prática. O primeiro passo foi torná-lo conhecido. Fui designado para datilografar tudo na velha máquina de escrever da administração. Em seguida, foram afixadas cópias na porta de cada quarto e em outros lugares visíveis da casa, fato que acabou por gerar algumas manifestações contrárias; no dia seguinte, algumas cópias apareceram arrancadas e rasgadas e os comentários desaprovadores foram feitos abertamente. Ainda assim, Isabel seguiu firme no seu propósito de botá-lo em prática. Para a confecção das carteirinhas de identificação, foi necessário numerar todas as camas e confirmar a numeração dos quartos que já existia, mas não era oficial. Com isso, minha cama ganhou o número trinta e dois. Isabel também resolveu numerar os lençóis, fronhas e as tolhas com o mesmo número da cama, usando um pincel com tinta acrílica. Na hora da confecção das carteirinhas, muitos alegaram não ter retratos nem condições para tirá-los. O serviço social conseguiu que fossem feitos através de um fotografo que trabalhava para a Fundação, sem que os internos nada pagassem por isso. Outra iniciativa nascida depois das reuniões para criação do estatuto foi a de montar uma espécie de banco de empregos, visando os muitos desempregados que existiam ali, através de parcerias de empresas – que comunicariam a existência de vagas – com o Projeto, que indicaria os candidatos aptos para cada função, cabendo a seleção final às futuras contratantes; embora tenham acontecido alguns contatos entre as assistentes socais e empresas interessadas na parceria, nada de concreto foi realizado nesse sentido.

Mesmo com todas as dificuldades, a casa parecia ir, aos poucos, entrando nos eixos. Lentamente, começaram a chegar pessoas mais centradas e com objetivos mais definidos, isto é, ficar ali até adquirir condições de pagar por sua moradia. As lideranças também estavam fortalecidas e isso fazia com que eu tivesse um contato quase que diário com as assistentes sociais; mais com Isabel do que com Blandina. As duas tinham temperamentos muito diferentes; enquanto Blandina mantinha uma considerável distância dos internos, Isabel era mais próxima, parecia mais interessada que tudo desse certo e era também a mais inflamada das duas; Blandina revelava-se mais intransigente, principalmente na hora de resolver qualquer questão relacionada ao comportamento do interno; para  Isabel o interno estava acima de tudo, para Blandina, as regras estavam acima de tudo. Independente disso, o trabalho delas não entrava em choque, pelo menos, não cheguei a presenciar nenhum tipo de situação que me levasse a pensar o contrário. O contato constante com elas me fazia ficar mais inteirado das coisas, conhecer mais a fundo os problemas da casa e isso me levou a uma constatação que me fez mudar ainda mais minha maneira de agir ali dentro: a Casa de Acolhida era um projeto pioneiro, um teste do qual dependeria a  abertura de outras casas, como aquela, para atender a todas as pessoas que viviam nas ruas. Vinha daí a explicação para o uso da palavra “Projeto” na frente do nome “Casa de Acolhida”. Isso fez com que me sentisse um tanto responsável por sua continuidade. Mais do que nunca, eu iria lutar para que desse certo. Tinha, é lógico, o meu interesse particular de que a casa durasse pelo menos mais quatro ou cinco meses, o tempo que me restava ali, mas acima de tudo pensava no bem que faria a outros, se viesse a dar frutos. Creio que não só eu, mas todos pareciam imbuídos do mesmo objetivo. A ideia de deixar de pensar simplesmente em si e dar espaço para o interesse coletivo tomou conta de todos; era comum ver todos trabalhando para que tudo realmente desse certo.

Esse espírito rendeu outras mudanças, como a construção de uma sala para o serviço social – buscando dar mais privacidade para o atendimento ao interno –, também em madeira, usando uma parte do refeitório, realizada por um interno, um senhor de uns sessenta e poucos anos, marceneiro, bastante habilidoso, que enfrentava sérios problemas de alcoolismo.  

Na nova sala, passou a funcionar também uma biblioteca. A iniciativa partiu de Isabel, que conseguiu algumas doações de livros e revistas. O acervo foi completado com doações dos próprios internos. Fui escolhido para catalogar tudo e acabei fazendo o papel de bibliotecário; separei os livros e revistas por ordem de assunto e fiquei responsável por emprestar e receber de volta o pequeno acervo. Isso me obrigou a criar um fichário e ter controle do que entrava e saia, bem como da conservação do material. Entre as doações também constavam brinquedos do tipo passatempo, como quebra-cabeças e dominós, que passaram a ser a grande diversão de todos. À noite, depois da sopa, a pedida era uma partida de dominó. Chegou-se a ter duplas que eram difíceis de serem vencidas, como o Chagas e o Menor, por exemplo. Novamente cogitou-se comprar um aparelho de televisão, mas a  lembrança da experiência fracassada ainda era muito forte e a ideia não foi adiante.

As mudanças não fizeram da casa nenhum paraíso, porém facilitou em muito a vida ali dentro. Os problemas existiam e não eram poucos, mas pairava no ar certa vontade de mudança.

A onda também atingiu os alcoólatras, que eram muitos e representavam, talvez, o maior problema enfrentado ali; o alcoolismo era o responsável por dificultar o relacionamento não só entre os internos, também entre o interno e os funcionários. Em suma, era a bebida a maior causa das confusões e das, ainda, constantes expulsões. Era triste ver um colega ser desligado porque bebeu um pouco mais e arranjou confusão. Na tentativa de resolver o problema, as assistentes sociais acabaram acatando a sugestão dos internos, Jorge Cozinheiro e um recém-chegado chamado Sérgio, ambos do quarto cinco, de convidar um membro dos Alcoólicos Anônimos para dar uma palestra no Projeto. Numa noite, recebemos a visita de um representante do grupo, que nos falou sobre os perigos do vício e nos alertou para o fato de que todo mundo é um alcoólatra em potencial; segundo ele, para ser considerado um alcoólatra bastava beber mais de um copo. Afirmação que me deixou um pouco apreensivo: sempre bebi mais que dois copos. A reunião foi bastante proveitosa. O representante deu depoimento dizendo manter-se longe do vício graças à entidade. Salientou também necessário ter coragem para assumir-se viciado e que esse é o primeiro passo a ser dado. O interno Jorge Cozinheiro deu depoimento afirmando-se alcoólatra; por causa do vício, foi expulso da casa dos pais e acabou vivendo na rua como mendigo, tendo encontrado ajuda somente ao procurar o AA. Depois disso, encontrou uma profissão, a de cozinheiro, daí seu apelido, e estava reconquistando a confiança da família. A seguir, foi a vez de Sérgio falar que, ao contrário de Jorge, se disse viciado em drogas, adotara a filosofia dos Alcoólicos Anônimos e já estava fazendo progresso. O emprego num hotel, na Rua Senador Dantas, no centro do Rio, era prova disso. A reunião contou ainda com a presença da Isabel e de alguns funcionários. Infelizmente, os internos que mais precisavam de ajuda não se interessaram.

Com todo esse clima favorável, voltei a pensar em Saudades da China. A Cláudia tinha agendado uma apresentação da peça na quadra da Escola de Samba Imperial, em Comendador Soares, na Baixada Fluminense. O público reagiu bem ao espetáculo e isso fez nascer a vontade de continuar. Só que apresentá-la num teatro convencional estava totalmente fora de cogitação; o preço do aluguel inviabilizava qualquer tentativa e ainda me faltava infraestrutura, não tinha condições, porém num espaço alternativo talvez fosse possível. Foi então que pensei em apresentar a peça no Projeto. Falei com a Isabel e a Blandina, que gostaram da ideia, mas pediram para ver o texto antes de tomarem qualquer decisão. Entreguei uma cópia para elas e, depois de se mostrarem um tanto desconfiadas do que seria realmente o espetáculo, resolveram arriscar. Voltei, assim, a fazer os ensaios no refeitório, despertando a atenção de todos, o que fez com que eu tivesse outra ideia: a de fazer com que alguns internos tomassem parte do espetáculo, embora tratasse de um monólogo, não foi difícil encaixá-los.

Semelhante à época da festa junina, a casa ficou em polvorosa; os internos participavam ativamente e o serviço social dava total apoio. De repente,  tudo tomou uma dimensão que eu não esperava; de uma simples apresentação, tínhamos o nascimento de um grupo teatral, com nome e tudo. Foi batizado de  “Os renascentes”, numa alusão à própria condição de cada um, como explicara o interno José Teles, que sugeriu o nome, ao ser questionado sobre o seu significado. Do grupo participavam ainda o Chagas, o Valdecir, o Geraldo e o Menor. Esse último, seu nome verdadeiro era Renato, mas pelo fato de parecer novo demais, era chamado de “Menor”, na verdade, era “De Menor”, apesar de ele afirmar que já tinha vinte anos. Além de atuar, cada um teve outra função: Chagas foi responsável pela iluminação e o som, José Teles, desenhista, cuidou dos cartazes, Valdecir foi uma espécie de diretor de cena, Gerado e o Menor fizeram a divulgação.

O dia da apresentação, 28 de agosto de 1991, foi como um dia de festa no Projeto. O palco foi montado no refeitório. Isabel resolveu cobrir todas as paredes com manchetes de jornais, também de jornal foram feitas as roupas dos atores-internos, que, em cena, tinham a função de ser a consciência do personagem Zé da Silva. Criei marcações fáceis, mas de bastante efeito, para que a presença deles no palco não parecesse uma coisa arranjada. Tudo transcorreu de forma perfeita e tivemos um público razoável: os internos, funcionários e alguns convidados, como a Lúcia Helena, chefe das assistentes sociais do albergue da Harmonia. Todos gostaram do espetáculo, apenas os internos salientaram o fato de que já  conheciam bem a história, pois muitos a viviam na própria pele.

Dias depois tivemos uma visita inesperada de Cláudia – “a dona da voz da Dorinha”, como era conhecida por todos do grupo de teatro –, que apareceu sem aviso prévio, depois de prometer visitar várias vezes e “dar o bolo”. Como eu avisava a todos, eles ficavam aguardando sua chegada, diante de seus furos, chegaram a duvidar de sua existência. Naquela noite, ela estava lá, em carne e osso, provando que realmente existia.

A incansável Isabel, pois não deixava a peteca cair, trouxe o convite da coordenadora Lúcia Helena para que apresentássemos a peça no albergue João XXIII, na Praça da Harmonia. A possibilidade de voltar àquele lugar, depois de ter passado lá dias tão ruins, não chegou a me animar; tinha medo de não conseguir fazer com que o meu trabalho de ator rendesse bem por causa das lembranças que ainda eram fortes. Mesmo assim, concordei com a apresentação e ela acabou acontecendo numa noite após a sopa, no refeitório, e recebeu o mesmo cuidado que a apresentação acontecida no Projeto. No dia marcado, fomos para lá cedo e desde a nossa chegada enfrentamos problemas com os funcionários, que chegaram a nos repreender por estarmos circulando dentro do albergue. Quando dizíamos o que estávamos fazendo ali, se desculpavam um tanto contrariados. A apresentação transcorreu bem. Novamente, tivemos uma plateia de albergados e alguns convidados. Somente eu não estive bem e jamais desejei tanto que um espetáculo chegasse ao fim; o fato de estar dentro do albergue não me fez bem, tinha jurado não pisar naquele lugar novamente e, mesmo numa situação diferente, deixei de ficar perturbado.

A peça voltaria a ser apresentada mais uma vez em Nova Iguaçu, porém numa outra casa, o Espaço Calabouço, da Casa de Cultura, mais voltada para a poesia e bastante alternativa. Por isso, encontrei alguma facilidade em agendar o espetáculo para o dia 29 de setembro de 1991, um domingo. Apesar de ter trabalhado durante o sábado no jornal, estava animado. Fomos todos juntos de trem, que pegamos na Central do Brasil por volta de meio dia – num domingo ensolarado e quente – e depois de uma hora e meia de viagem estávamos chegando ao destino.

Para essa apresentação, tudo foi remodelado, e gerou certo nervosismo, afinal, era a primeira vez que o grupo se apresentaria fora dos domínios  da Fundação, precisava caprichar. Além do que, íamos cobrar ingressos, tinha de ser uma apresentação mais profissional. Entre as mudanças, estava a entrada do Valdemir substituindo o Valdecir, que agora cuidava do som. Valdemir, também conhecido como “Índio”, era um interno que tinha acabado de chegar ao Projeto, ao tomar conhecimento do grupo, se ofereceu para fazer parte.

Dessa vez, consegui que saísse nos jornais da baixada e a Cláudia, que trabalhava num pequeno jornal chamado “O Estadão de Belford Roxo”, nos deu muito apoio. Coube ao Antônio, o plantonista, fazer os cartazes em silkscreen. Mais uma vez, a Isabel nos acompanhou, sempre registrando tudo com sua máquina fotográfica. Alguns internos também foram; entre eles, o Cláudio e o Chileno. Chagas  levou uma senhora de nome Lúcia, que apresentou como sua namorada, que se mostrou prestativa e solícita. Dois incidentes marcaram a apresentação: Geraldo, num descuido, caiu do palco, e a voz da Dorinha, que era feita pela Cláudia, por uma falha técnica, não entrou. O problema é que ela estava na plateia e foi difícil evitar o constrangimento. Após o espetáculo, teve início um pequeno debate em que falei um pouco sobre a peça e o que me levou a  escrevê-la. A grande curiosidade de todos era saber se aquela era a história da minha vida. Expliquei que não e que tive a ideia ao sentir necessidade de fazer alguma coisa que expressasse a minha profunda indignação com tudo o que me cercava e o resultado tinha sido aquela peça. Perguntaram também sobre a minha vida e como eu tinha chegado até ali; respondi a tudo com prazer. Pela primeira vez, a peça encontrava um público com distanciamento bastante para poder discutir e entender sua temática. Saí de Nova Iguaçu com a alma lavada. Quando chegamos ao centro do Rio, depois de levarmos Isabel ao ponto de ônibus, fomos para um bar, na Avenida Mem de Sá, onde comemoramos o nosso “sucesso”. Todo aquele período ainda duraria por algum tempo, mesmo com os ventos soprando contra.

 

 

Capítulo 11

 

AS PEDRAS DO CAMINHO


 

Embora totalmente envolvido com as questões do Projeto, não me descuidava de meus interesses pessoais; tinha traçado metas que só seriam atingidas quando conseguisse um emprego que me permitisse sair definitivamente dali. Para que isso acontecesse mais rapidamente, parei de trabalhar na obra e fiquei apenas com o serviço dos finais de semana no jornal O Dia; o que ganhava dava para me manter, possibilitando que, durante a semana, me dedicasse a procurar emprego com mais tranquilidade. O restante do tempo dedicava a casa, sempre procurando ser útil em alguma coisa. A aproximação com o serviço social e minha atuação junto aos internos, fosse com o grupo de teatro ou em qualquer outra função, me rendia uma boa popularidade, não havia quem não me conhecesse, porém, trazia a reboque um grande inconveniente: a antipatia despertada em alguns internos e até mesmo em funcionários não interessados no bom funcionamento da casa, principalmente pelo fato de eu estar sempre próximo às assistentes sociais; e como elas não ficavam na casa todo o tempo, mas estavam sempre por dentro de tudo, eles julgavam que era eu quem as mantinha informadas, juntamente com todos que faziam parte da turma que ficou conhecida como “pessoal do teatro”, termo que era usado, muitas vezes, de maneira pejorativa. Na verdade, éramos vistos como uma espécie de fiscais do Projeto, o que fazia esse pessoal interromper conversas ou atos de insubordinação quando percebia nossa presença, temendo que fosse dedurado. No que, de certa forma, procedia, pois nosso interesse era de que a casa funcionasse bem; era para isso que estávamos trabalhando. Entre os funcionários antipáticos a nós, além de alguns plantonistas e das cozinheiras, estava o próprio coordenador José Luís. Não entendia bem o motivo por que ele não estava muito satisfeito com todas aquelas mudanças; apesar de inicialmente ter se mostrado simpático e até ter chegado a colaborar, aos poucos foi demonstrando que a coisa não era bem assim; passou a criticar abertamente as assistentes sociais e, quando tinha oportunidade, as boicotava, interpondo-se no trabalho delas junto aos internos, permitindo a presença na casa daqueles que haviam sido desligados ou cujos prazos de permanência tinham chegado ao fim: havia uma turma de cinco ou seis que estava com seus prazos esgotados: o Fábio do Biscoito, o Pará, o  Formigão, o Neguinho e o China, que estavam ali desde a inauguração, em fevereiro de 1991, quando, segundo um deles, teria sido o único dia em que a casa realmente funcionou direito. Contava o Fábio do Biscoito, amazonense, baixinho e bom de argumentos, que o Projeto fora inaugurado com um lauto almoço que contou com a presença de autoridades e da imprensa.

- Fizeram tudo bonito, só para tirar fotografia; depois da inauguração, nunca mais teve um almoço daqueles nem nada funcionou direito, afirmava e concluía dizendo que era pioneiro e que, portanto, tinha direito de permanecer na casa indefinidamente. Além de salientar seu bom-comportamento e o fato de ser um trabalhador; para ser exato, era uma espécie de empresário, vendedor de biscoitos, tinha bancas espalhadas por vários pontos do centro da cidade e, para mantê-las, contratava os serviços de alguns internos, José Teles um dos albergados que trabalhavam para ele.

Como o empresário de biscoitos, os outros apresentavam seus motivos para não sair: Pará, Formigão e Neguinho diziam não serem só internos, mas funcionários do estacionamento que funcionava ao lado que, segundo eles, cedera o terreno para a construção do Projeto Casa da Acolhida, e o China, um nordestino, que de chinês não tinha nada, quarentão, moreno, tinha o costume de se drogar, assim como fazia o Pará, o Formigão e o Neguinho, dizia-se casado e morador da Baixada Fluminense, para onde afirmava ir todos os fins de semana, trabalhava num estacionamento da CODERTE em algum ponto centro da cidade e vivia esbanjando dinheiro, o que me fazia pensar que ele não tivesse necessidade de estar ali, mas não sairia enquanto os outros não saíssem, ou seja, estava estabelecido o impasse. Nas ocasiões em que se drogava, ficava violento ou simplesmente deitava na cama e passava a noite inteira falando coisas desconexas, como se estivesse louco, perturbando o sono de todos no quarto.

Os quatro eram as verdadeiras ovelhas-negras do Projeto. Jamais se conseguiu fazer qualquer coisa contra eles, mesmo sendo os responsáveis por quase todas as ocorrências que se davam ali. A explicação para tanta tolerância estava no fato de serem amigos do Coordenador, que os defendia toda vez que se tentava colocá-los para fora. No entanto, com o fim de seus prazos de permanência, as assistentes sociais passaram a fazer pressão: eles precisavam deixar suas vagas para outros que estavam esperando na fila.

Outro grande problema, e que também incluía o Coordenador, era a venda de produtos, proibida pelo estatuto e vinha acontecendo cada vez com maior frequência. Fábio, para citar um exemplo, comercializava seus biscoitos abertamente e praticamente todos os internos, incluindo eu, eram seus fregueses; os biscoitos eram uma espécie de complemento alimentar para todos, principalmente quando a sopa não era servida. Tinha também o fato de que vendia fiado, o que fazia com  que as assistentes sociais, de certa forma, fechassem os olhos para a questão. Por outro lado, elas faziam pé-firme na questão da venda de refeições, feita pelas cozinheiras dona Maria e dona Terezinha, passando por cima da proibição. Diziam fazer isso porque o Coordenador não deixava suprimentos para fazerem a sopa; diante disso, elas compravam o mantimento usado na confecção das refeições do próprio bolso, por isso, tinham de cobrar. Estranho que nos outros plantões sempre havia comida, ainda que fosse uma sopa rala, fazendo nascer a suspeita de que elas usavam o material da sopa para fazer a comida que vendiam, além, é claro, do gás. Polêmica à parte, não havia quem não apreciasse a comida caseira que as duas cozinheiras serviam; todos ali estavam fora de casa, e nada melhor que aquela comidinha para matar a saudade do tempero da mamãe. Depois de comer pela primeira vez, fiquei freguês e tentei convencer as assistentes sociais a liberarem, argumentando sobre a importância que tinha para nós, mas elas não arredaram o pé; eram contra e não tinha conversa; afirmavam que a atitude só servia para colocar em descrédito o trabalho do Projeto.

Dona Maria, uma das cozinheiras, era uma senhora muito popular, que gostava de conversar com todos e aos domingos vinha, acompanhada do marido e familiares, para realizar  cultos evangélicos na casa; por sua vez, dona Terezinha, a outra cozinheira, era mais calada, de poucos amigos. Mais tarde, outras cozinheiras aderiram à ideia de vender comida. Uma delas foi dona Irene, uma mulher espalhafatosa, de fala grossa, mas de grande coração, que vendia salgados, que fazia em casa, geralmente, no café da manhã. Aos poucos, tornou-se uma grande mãe de todo mundo; sempre passional e engraçada, lembrava uma mama italiana dessas das novelas. Rezava terços juntamente com o plantonista Aílton, outra figura bastante peculiar, e contava que se casou no programa do Jota Silvestre, na televisão. Com a dupla, trabalhava Vera, uma cozinheira, relativamente jovem, gordinha, que usava um batom muito vermelho e que gostava de se insinuar para os internos.

Os plantonistas seu Odilon, Gaspar, Ernani, Valentim e Antônio, e os cozinheiros, dona Teresa, Chiquinho, Aparecida e Paula não faziam nada além de cumprir os seus plantões. Alguns, com mais eficiência, outros, com menos, mas sem criarem grandes polêmicas, apesar dos constantes envolvimentos que existiam entre funcionários e internos, sobretudo os plantonistas; era comum saírem para beber com internos, abandonando o posto. Quando acontecia algum problema grave, e era comum acontecer, eles nem sempre estavam presentes. Não raramente, as amizades acabavam em confusão e, consequentemente, em expulsão do interno envolvido. Talvez isso se desse com tanta frequência pelo fato de que o convívio entre acolhidos e funcionários fosse muito próximo. Outro dado comum era o fato de, muitas vezes, o plantonista, ou demais funcionários, ser tão ou até mais problemático que os internos; havia, entre eles, casos de alcoolismo, dependência química e outros problemas, tornando a vida no Projeto um tanto difícil, pela forte insegurança gerada. Com o tempo, já era possível saber qual o plantão mais tranquilo ou o mais agitado, e, diante disso, aprendi como agir em cada um deles para não me envolver em problemas.

A bomba de sucção, que puxava água da rua desapareceu. A ocorrência se deu no plantão do Antônio. O Coordenador foi comunicado e apareceu para apurar o que tinha acontecido. As suspeitas recaíram sobre os internos e instalou-se um clima de suspeitas e acusações. Muitas histórias passaram a ser contadas: havia internos que juravam ter visto o Pará roubá-la; outros afirmavam que o próprio Coordenador mandou retirá-la. O certo é que nada ficou provado. Apenas o plantonista viveu a ameaça de um inquérito administrativo, que, creio, não aconteceu.

O roubo, ou retirada, da bomba gerou um problema sério: sem ela, não tínhamos água. A situação durou dias, a vida no Projeto ficou impraticável. A solução veio através do vizinho, o dono da oficina mecânica em frente, chamado de Ruço – nada a ver com o outro Ruço do albergue da Harmonia, embora ambos guardassem alguma semelhança física: eram gordos e aloirados –, que, numa atitude benevolente, resolveu fornecer a água de sua oficina mecânica, que funcionava num prédio antigo que dava para a Rua Dom Pedro I.

Inesperadamente, o Coordenador passou a frequentar mais assiduamente o Projeto. Se antes apenas entrava e saía rápido, agora  era comum vê-lo por lá com alguma constância. Parecia estar disposto a colocar a casa nos eixos, como se, de uma hora para outra, tivesse acordado e tomado consciência de que seu trabalho era um tanto quanto medíocre. Numa dessas idas, apresentou um policial de meia-idade, já era conhecido de todos os internos, que teria a função de ajudá-lo a manter a ordem. O militar passou a entrar nos quartos, pela manhã, acordando quem estivesse dormindo, não queria saber de ninguém dormindo durante o dia, bastava que alguém estivesse deitado e lá vinha ele com um discurso na ponta da língua e o cassetete na mão, criando problema para aqueles que trabalhavam à noite e precisavam dormir de dia. Mais uma vez, José Luís entrou em choque com o serviço social: a permanência do interno no Projeto, durante o dia, era acertada com elas.

A chegada de um caminhão abarrotado de gêneros alimentícios movimentou a casa; de uma hora para outra, alguns homens começaram a descarregar as mercadorias: sacos de leite em pó, arroz, açúcar, farinha,  feijão, latarias e carnes salgadas. Disseram tratar-se de uma doação de um supermercado do Rio. Tudo foi recebido com grande entusiasmo e logo foi possível ver os funcionários encherem suas bolsas e levarem o que queriam para suas casas. Quando alguém se colocava contrário àquela atitude, diziam que agiam daquela forma por estar há anos sem receber aumento de salários. Alguns usaram essa ocasião para dizerem que a situação deles não era diferente da nossa; estavam passando por privações tanto ou mais do que nós. Apesar deste saque explícito, sobrou muita coisa e a despensa ficou cheia. Com isso, voltou a ser servido o café da manhã e a sopa passou a ser um prato mais apetitoso. Período em que o Coordenador pôde ser encontrado no refeitório lembrando a todos que a doação fora conseguida graças aos seus esforços, prova maior de seu trabalho, porém, o Baiano reivindicava para si o feito, afirmando que o caminhão de alimentos foi doado a ele, mas, por não ter o que fazer com tudo aquilo, teria resolvido cedê-lo ao Projeto. Os dois discutiam muito e sempre que podiam um desmentia o outro, nunca chegando a um acordo quanto ao verdadeiro benfeitor; o mais acertado é acreditar que não tenha sido nem um nem o outro.

Novamente, fomos convidados a fazer uma apresentação com o grupo. Dessa vez, queriam uma peça infantil para as crianças do albergue da Harmonia. Pensei em alguma coisa e no final acabei escrevendo: “Juca e Bilo, em busca de uma grande aventura” sob medida para os integrantes do grupo, até no número de personagens, e conta a história de duas crianças da zona sul do Rio que resolvem fugir de casa e acabam vivendo uma aventura nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. Tão logo a peça ficou pronta começamos a ensaiar. Inadvertidamente, resolvi convidar a Lúcia, namorada do Chagas, para participar da peça, por ela estar constantemente no Projeto e, portanto, sempre presente aos ensaios, mas logo iria me arrepender; era uma pessoa problemática e, como o Chagas, bebia muito e era usuária de drogas, embora se fizesse passar por uma pessoa equilibrada e ter chegado a oferecer ajuda profissional às assistentes socais. Entretanto, era fácil perceber que era uma desatinada, pois chegou a pedir para morar no Projeto para, segundo ela, tomar conta de nós. Além desse, outro problema atrapalhou o desenvolvimento do trabalho: o alto índice de analfabetismo da turma; a maioria mal sabia assinar o nome e, por haver texto a ser decorado, tudo se tornou impossível. Diante disso, optamos por fazer um trabalho de improvisação. Ideias boas surgiram e chegamos a montar alguns esquetes, que acabaram morrendo no nascedouro.

A inesperada assiduidade do Coordenador foi logo entendida: o serviço social chegou com a notícia de que a Fundação Leão XIII tinha um novo diretor: ele se chamava Major Heleno, era da polícia, e tinha acabado de ser nomeado pelo governador Leonel Brizola. Segundo as assistentes sociais, a nomeação significava que o governador tinha interesse na Fundação e isso representava a esperança de que as coisas finalmente entrariam nos eixos e que todos os problemas da casa seriam resolvidos. Nesse espírito, recebemos a visita de um grupo de pessoas que se dizia parte da diretoria da Fundação e viera em nome do novo diretor. No grupo estava uma senhora de nome Carmem que nos avisou que o Major viria pessoalmente nos visitar, pois ele já tinha ouvido falar do trabalho do grupo de teatro que existia no Projeto e queria muito nos conhecer. Ficamos todos empolgados com as palavras elogiosas e jamais poderíamos sequer desconfiar do que viria após a visita. Dias depois, durante uma madrugada, fomos despertados por um batalhão de soldados da polícia militar, fortemente armado, que invadiu os quartos, vasculhou todos os nossos pertences e deu uma geral em todo mundo. Debaixo de gritos, fomos obrigados a deixar os quartos e ficar de pé do lado de fora, onde sofremos uma revista. Ninguém entendeu direito o que estava acontecendo e quem fazia alguma pergunta era logo repreendido; os policiais pareciam estar à procura de alguém ou de alguma coisa. Feito isso, o batalhão foi embora, sem levar nada nem ninguém. A partir daquele dia, as batidas policiais passaram a ser quase que diárias, deixando todo mundo muito apreensivo. Assim, ficamos conhecendo as mudanças que o novo diretor estava implantando; fomos informados que aqueles policiais vinham por ordem dele, como resposta às denúncias de roubos e outras infrações, cometidas pelos internos nas imediações da Praça Tiradentes, que chegaram ao seu conhecimento. Pelo que ficou entendido, a vizinhança, sobretudo os comerciantes, não apreciava muito o fato de ter aquela unidade da Fundação Leão XIII tão próxima, e acusava os internos por tudo de ruim que acontecia na área.

Mais mudança ocorreria, mas, dessa vez, com relação aos funcionários, principalmente as cozinheiras, que eram obrigadas a dormir no Projeto e recusavam a fazê-lo, alegando que não havia acomodações para elas, o que, de certa forma, era verdade. Todavia, após a entrada do Major, elas passaram a dormir na casa, a fazerem o café da manhã pontualmente e só irem embora quando fossem rendidas pelas colegas do plantão seguinte. Os plantonistas também passaram a ficar mais no Projeto e a fazer questão de que assinássemos o livro de presença, exigência que há muito tinha sido esquecida; antes, o único que fazia exigia era o plantonista Aílton, que era capaz até mesmo de acordar um interno de madrugada, se percebesse que ele não assinara o livro.

Nesse período, fomos procurados por uma jornalista e um fotógrafo que diziam ser de uma revista de São Paulo e queriam fazer uma matéria sobre a vida dentro do Projeto: como vivíamos, que tipo de assistência nós recebíamos, por que estávamos ali e quais eram nossos objetivos. Fui apresentado a eles pela Isabel, que me convenceu da importância de dar uma entrevista falando do Projeto e do grupo de teatro. Apesar de ter ficado um pouco receoso, resolvi falar e os coloquei em contato com os outros integrantes do grupo. O único senão foi na hora das fotos: ninguém aceitou posar para a lente do fotógrafo. A possibilidade de ser reconhecidos, através das fotos que seriam publicadas na revista, deixou todos bastante temerosos; as famílias não sabiam que estavam naquela situação. Pela mesma razão, também recusei. Quanto à reportagem nunca soube se saiu ou não, nem nunca soube sequer o nome da revista.

A atitude coletiva de não querer posar para fotos e se expor me fez pensar num fato: eu estava há mais de um ano sem fazer contato com minha família e, embora evitasse pensar no assunto, não podia negar que isso me incomodava. Situação comum entre quase todos os internos; a maioria tinha perdido contato de vez com a família, talvez fossem dados como mortos, ou, como eu, estava sem dar notícias há meses ou anos. Isso ficou claro quando apareceu no Projeto a mãe do José Teles dizendo que procurava pelo filho há meses e que chegou a ter notícia de sua morte.

- Nem posso acreditar, meu filho; graças a Deus, você tá vivo, ela disse emocionada abraçada ao filho no comovente reencontro.

Outro que foi “encontrado” no Projeto foi o Leandro, um rapaz negro, magro, relativamente alto, devia ter por volta de vinte anos, gostava de andar sempre bem-vestido e dizia trabalhar na recepção de um hotel na zona sul, embora, na verdade, fosse garoto de programa. Um dia, seus pais, que viviam no interior do estado do Rio de Janeiro, apareceram e o levaram de volta para casa. No meu caso, tinha decidido que só entraria em contato com a família quando estivesse numa situação estável; para isso, precisava, com urgência, conseguir um emprego de carteira-assinada, porém, não estava nada fácil.

 

 

Capítulo 12

 

NO MEIO DO CAOS


Como já disse, o Projeto era um local aberto, sem muita proteção, o que facilitava a aproximação de pessoas que viviam ou trabalhavam nas redondezas, principalmente a Praça Tiradentes, de onde vinham os ladrões, as prostitutas e os travestis, que usavam o estacionamento para seus encontros com clientes, cheirar cocaína, ou mesmo para fazer acertos de contas uns com os outros, pois era comum, por exemplo, ver os travestis brigarem por ali quando, geralmente, usando estiletes, giletes e outros objetos cortantes e as brigas terminavam, quase sempre, com alguém de cara cortada. O local atraía também as pessoas desabrigadas e mendigos que iam até lá em busca de comida ou mesmo de um lugar para passar a noite; muitos ficavam por ali mesmo ou se tornavam habituais frequentadores. Todavia, era um velho conhecido de todos que mais atraía mais pessoas: Baiano, aquele mesmo que ficava sentado no refeitório fazendo entalhes na madeira e provocava muita sujeira; ele continuava por lá, ele e seus garotos. Começou com um menino, que mais tarde viria a ser apelidado de Baianinho, devido à semelhança física entre eles. Baianinho, que tinha por volta de uns treze anos, logo conquistou a todos, porém, ficou conhecido mesmo foi pelo hábito que tinha de aproveitar qualquer descuido para entrar nos quartos e praticar pequenos furtos, como fez com a câmara fotográfica do Valdecir, que  roubou e vendeu para uns garotos que viviam nas imediações do aeroporto Santos Dumont, onde o dono foi buscá-la, depois de apertá-lo e ouvir sua confissão. A ocorrência foi denunciada às assistentes sociais, e veio reforçar a posição contrária que sempre tiveram a respeito da presença do Baiano na casa.

Baiano não ficaria somente com o Baianinho; aos  poucos foram chegando outros garotos, que se instalaram por ali, onde dormiam, cheiravam cola e roubavam. Alguns eram dóceis e de fácil convívio, no entanto, outros eram verdadeiros pequenos marginais. Com o tempo, descobriu-se que o Baiano tinha interesse em cuidar de meninos de rua e parecia estar bastante empenhado nisso; dizia que já tinha comandado um abrigo para menores que funcionava numa casa da Rua República do Líbano. Certa ocasião, ele chegou a reunir turma para tentar retomar a tal casa, pois afirmava que o diretor do abrigo havia usurpado seu lugar usando de meios escusos. Numa noite, vi quando ele, as crianças, alguns internos e funcionários saíram armados de paus e pedras para retomarem a casa, usando a força: chegaria, botaria o diretor para fora e o lugar seria dele novamente. Ali, abrigaria todas aquelas crianças e todos ficariam bem, até empregos prometia para quem apoiasse a sua causa, entretanto, não foi isso o que aconteceu, pois voltou sem nada conseguir e se instalou os garotos de vez no Projeto, e o convívio com os internos não era bom; quase sempre tinha confusão, ou seja, mais um problema de difícil solução; não era apenas o constrangimento da presença dos garotos dormindo ali jogados pelos cantos da casa, em total promiscuidade, mas o de ver mães em busca de seus filhos: elas vinham procurá-los e, em alguns casos, eles estavam ali, porém Baiano os escondia.

A cozinheira dona Maria entrou nessa história ao adotar um desses garotos, aliás, dois, levou-os para casa e passou a cuidar deles. Os meninos, que estavam sujos e malcuidados, passaram a frequentar o Projeto limpos e bem-vestidos, pois ela os plantões de domingo. Vendo isso, Baiano tratou de tentar reconquistá-los com falsas promessas. Um deles, logo retornou para sua companhia, deixando a casa de dona Maria; o outro ficou com a cozinheira. Cheguei a vê-lo, na companhia dos pais adotivos, lendo trechos da Bíblia durante os cultos que se realizavam no Projeto, acredito que organizados pela própria dona Maria. A cena deixava o muito irritado, demonstrando que sua intenção com os garotos não era das melhores.

A partir daí, ele se tornou uma pessoa não muito grata para todos e a ser visto como explorador de menores. Isso se confirmava quando eles eram vistos roubando ou pedindo esmolas nas ruas do centro da cidade e depois lhe entregarem todo o dinheiro. Quando isso acontecia, era fácil de notar, pois sempre saía para jantar ou dormia fora. No mais, continuava ali, brigando e esbravejando, agindo, muitas vezes, como um louco. Nessas ocasiões, dizia ser amigo particular da esposa do governador, dona Neusa Brizola, a madrinha do projeto revolucionário que tinha para tirar todas as crianças das ruas. 

- Só eu posso acabar com o problema do menor abandonado no Rio de Janeiro, ele afirmava.

No meio de tudo isso, não era difícil deduzir que o Projeto tinha perdido a tranquilidade que havíamos conquistado com tanto trabalho. Já não era mais possível acreditar que o novo diretor da Fundação resolveria alguma coisa. Haja vista, os seus métodos. A saída foi tentar adiantar o meu lado. E, por ainda não ter conseguido um emprego de carteira-assinada, voltei a ficar preocupado com o futuro. Logo, meu prazo de permanência acabaria e, do jeito que as coisas estavam, era possível que nem chegasse até o fim; a convivência entre menores de rua, bêbados, drogados, marginais foragidos, internos e funcionários não era o que se podia classificar de pacífica, mesmo com certa tolerância que passou a existir; já não se via os arroubos dos primeiros dias e até os inveterados defensores da boa-ordem se metiam em confusões.

Um indivíduo, que estava vivendo escondido por ali, me jurou de morte: dizia ser de uma favela em Bangu, onde teria se envolvido em briga com outros bandidos da área para tomar o controle do tráfico. Vivia armado e não fazia questão de esconder isso, pois estava sempre mostrando um revólver do tipo trinta e oito. Tudo se deu quando eu tentei impedi-lo de se instalar no meu quarto, sem o conhecimento do serviço social. Ele não gostou e partiu para cima de mim, dizendo que me daria um tiro. Seus gritos atraíram a atenção dos internos, que foram chegando, o que, possivelmente, o deixou intimidado e impediu que atirasse em mim. Fiquei muito assustado com o episódio e pedi ajuda às assistentes sociais, que ofereceram como alternativa que eu voltasse para o albergue da Praça da Harmonia até as coisas acalmarem, o que, para mim, estava completamente fora de cogitação; se tivesse de voltar para aquele lugar, preferiria a rua. Tinha decidido que para aquele lugar não voltaria. Não porque não fosse um lugar bom ou coisa parecida, era porque tinha estabelecido uma meta e voltar para o albergue da Harmonia era um retrocesso. A saída, então, foi conviver com o perigo, contando com a proteção de Deus e de amigos, como o Chagas e o Valdecir, que passaram a me escoltar, cuidando para que eu não ficasse sozinho. Dias depois, a figura sumiu sem deixar rastro.

Deficiências do Projeto à parte, em nossas noites ociosas, em geral, ficávamos batendo papo até por volta de meia-noite, sentados no refeitório, embora isso fosse contra o regulamento, pois o horário estabelecido para todos estarem nos quartos era dez horas. Poucas vezes, isso foi levado a sério, mesmo porque o calor de quarenta graus da cidade do Rio de Janeiro num quarto pequeno, com oito marmanjos, não ajudava muito.

Através do livro de presença que, mesmo com toda aquela desordem, ainda tínhamos de assinar, confirmava-se o fato de que a maioria dos internos era analfabeta ou semianalfabeta. Por isso, chegou-se a pensar em criar um curso de alfabetização, mas a iniciativa não foi para frente.

Durante os longos bate-papos, íamos conhecendo um pouco da vida de cada um; ouvíamos histórias de alegrias e tristezas, muito erro e pouco acerto. Como a maioria fazia parte da turma do teatro, essas conversas acabavam quase sempre tomando um caráter de trabalho de grupo. Algumas vezes, caminhávamos até o Aterro do Flamengo e as reuniões aconteciam no anfiteatro de lá, um local aberto, próximo à sede da empresa Rio-Luz. Foi numa dessas reuniões que cada um falou de sua vida, respondendo perguntas do tipo: “O que o levou a sair de casa?” ou “Por que motivo acabou na rua sem moradia?” O primeiro a falar fui eu. Falei da minha obstinação em seguir a carreira de ator, o desemprego, a falta de oportunidades para um ator desconhecido encontrar trabalho e tudo o mais. A seguir, sentados em círculo no anfiteatro, cada um falou por sua vez. Valdecir, falou do casamento desfeito em Sorocaba, no interior de São Paulo, fato que o deixou muito abalado e o fez sair da cidade; primeiro, tentou viver na capital paulista, mas resolveu aumentar a distância, vindo para o Rio de Janeiro, e trabalhava num hotel. Geraldo, falou de seu assunto preferido: a sua opção sexual; a razão para ter saído de casa foi para fugir dos pais e dos muitos irmãos, que não aceitavam seu homossexualismo, que tentou mascarar tornando-se evangélico, porém acabou seduzido por um irmão da igreja, o caso veio a público, fazendo cair sua máscara. Logo a seguir, falou o Renato Holzmeister, o Menor, de Vitória Espírito Santo, onde a família vivia; seu nascimento se deu do encontro entre um europeu e uma negra brasileira: o pai, um alemão que veio para o Brasil, ainda criança, juntamente com toda a família, fugindo de uma Alemanha arrasada pela segunda guerra mundial e a mãe era uma negra capixaba. Revelou que as histórias que a avó alemã, que ainda vivia, contava o faziam desejar conhecer o país natal do pai. Só não conseguiu explicar o real motivo que o levou a sair de casa tão novo, fazendo crescer a certeza de que ele era realmente menor de idade e que estava ali sem o conhecimento da família. Renato, como eu preferia chamá-lo, trabalhava comigo no jornal O Dia aos sábados e, durante a semana, com o Fábio do Biscoito, tomando conta de uma banca em frente ao Teatro João Caetano. Paulo, ou Paulista II, disse que estava no Rio para aprender a viver; viciado em drogas, saiu de casa prometendo à mãe, que era dona de um bar num bairro da periferia de São Paulo, que só voltaria quando estivesse regenerado. Chileno, que era mesmo natural de Santiago do Chile, falou que chegara ao Brasil com alguns dólares, mas que fora assaltado logo na chegada, quando andava pelo calçadão de Copacabana. Veio para o Brasil, dentre outros motivos, para fazer uma plástica.

- A cirurgia plástica no Brasil é muito adiantada, afirmava.

Já tinha conseguido se operar, de graça, na Santa Casa de Misericórdia, mas tinha decidido viver no Brasil. Trabalhava com artesanato e tinha uma banca na Praça do Lido, em Copacabana. Falou também das dificuldades encontradas por ser estrangeiro, e que, no início, não estavam querendo aceitá-lo no Projeto por esse motivo; teve de conseguir uma carta do consulado do Chile para que fosse aceito. Tudo isso, falado com um sotaque muito carregado e uma extrema dificuldade de se expressar em português; era o único estrangeiro do Projeto. Em seguida, falou o Cláudio que, para espanto de todos, disse que tinha uma família muito problemática. O pai morrera num acidente automobilístico, a mãe, que era esquizofrênica, e os irmãos viviam em Recife. A família possuíra muitos bens, porém todos foram vendidos após a morte do pai. Veio para o Rio tentar a sorte e, quando conseguiu um emprego, escreveu para a mãe dando a notícia. Para sua surpresa, ela apareceu em seu trabalho, dias depois, de malas e bagagens, para morar com ele. Só que, apesar de estar trabalhando, ele morava na rua. Sem ter como explicar a situação, arrumou uma desculpa e a colocou num ônibus de volta para Recife, no mesmo dia. Quando falou, se emocionou a ponto de chorar. Refeito, acrescentou que desde então não tivera mais notícias dela ou dos irmãos. No momento, sua situação estava diferente, pois finalmente tinha conseguido um bom emprego; faltava tomar coragem para voltar a fazer contato com a família. Depois foi a vez de Chagas falar de suas eternas porra-louquices, entre as quais, o estranho e divertido triângulo amoroso que vivia com Geraldo e Lúcia. Para ser franco, ele explora os dois. No mais, falou que era mineiro de Ipatinga e que sua maior preocupação na vida é que nunca faltasse maconha no mundo. Alguns que já tinham falado tomaram novamente a palavra e a ordem foi perdida. De repente, até os que inicialmente se negaram a falar como o Valdemir, o José Telles e outros resolveram relatar suas histórias. E assim, sem nenhuma obrigação, cada um falou de si, numa espécie de desabafo. A cada encontro desses, e eles foram muitos, todos iam se conhecendo melhor. Isso fez nascer um sentimento de irmandade, de fraternidade entre todos; era como se ninguém estivesse mais sozinho, pois tínhamos uns aos outros. Pelo menos, para dividir as mágoas, queixumes e alegrias, mesmo que as histórias muitas vezes não tivessem muito nexo e parecessem inverossímeis.  

E foi nesse clima que num domingo preparamos um churrasco, no próprio Projeto. A turma se reuniu e preparou tudo: além de carne, teve muita cerveja, que era proibida, e música. No dia seguinte, o serviço social foi avisado de nossa “insubordinação”, mas, por não ter acontecido nenhum incidente, a denúncia acabou perdendo sua força e foi esquecida.

O Projeto já não era um lugar ideal para ficar, então, a saída era arrumar muita atividade fora. Por isso, íamos a cinemas, museus, ao Centro Cultural Banco do Brasil e a toda e qualquer programação gratuita que saía nos jornais. Outra opção eram as praias, para onde íamos aplacar o forte calor do final do ano, as preferidas eram Copacabana e Ipanema, mas às vezes íamos também ao Flamengo. Todo domingo, saíamos em turma e passávamos o dia fora. Geralmente, era um passeio muito agradável e sem incidentes. Valdecir gostava de registrar esses momentos com sua máquina fotográfica. Uma vez reveladas, as fotografias eram mostradas a todos. O fato de alguém sair mal na foto, ou ser muito feio, era motivo de muita gargalhada.

O tempo passava e as coisas não melhoravam; as brigas eram constantes e eu já tinha perdido a esperança de ver aquilo funcionar direito novamente. Alguns internos, como o Cláudio, o Sérgio e o Jorge Cozinheiro pediram para sair alegando que não tinham mais motivos para continuarem ali: Cláudio estava trabalhando como segurança no Shopping Rio Sul e alugou um quarto na Avenida Gomes Freire; Sérgio e Jorge foram morar em seus respectivos empregos; até o Geraldo, depois de viver entre Copacabana e o Projeto, decidiu morar em seu novo emprego, muito mais pela decepção de ver seu amado Chagas nos braços da Lúcia do que por qualquer outra coisa. 

Os amigos saindo, a casa já não era o lugar agradável de antes, o que a falta de água, que Ruço deixou de fornecer devido ao aumento excessivo da conta, só agravava. Dessa forma, deixou de ter água para fazer a sopa, dar descarga nos banheiros, banho, então, estava fora de cogitação. Mesmo com todo esse caos, o vizinho batia o pé e dizia que só voltaria a fornecer caso a Fundação se responsabilizasse por sua parte na conta, incluindo as cobranças dos meses anteriores; alegava que não tinha como arcar com tudo sozinho; diante do impasse, a água permanecia cortada.

Depois de muita negociação, Ruço acabou concordando em encher a caixa do Projeto uma vez por dia, o que fez com que a água passasse a ser objeto de disputa entre todos. E, como havia muita gente para tomar banho e usar os sanitários, o jeito era não dormir no ponto. Até mesmo as cozinheiras precisavam entrar na briga para garantir a água para a sopa, a lavagem dos alimentos e dos pratos; se por ventura não conseguissem, não tinha sopa; porém difícil mesmo era aguentar o mau-cheiro dos banheiros e das outras dependências da casa; com o forte calor do verão, a casa passou a ser o paraíso das moscas e de outros insetos.

As mudanças continuaram. O coordenador José Luís foi afastado e substituído pela Blandina, para o lugar dela veio uma nova assistente social, a Cláudia, uma moça morena, relativamente jovem, que iria estabelecer um relacionamento distante entre os internos e o serviço social; não admitia muita aproximação e fazia questão de definir os papéis. O que, para o trabalho dela, talvez fosse bom, mas não era o que todos estavam acostumados. Como ela se apresentava como chefe, Isabel passou a ter o mesmo comportamento. Dessa forma, os desligamentos passaram a acontecer com  mais frequência, incluindo os protegidos do antigo coordenador, cujos prazos de permanência já tinham terminado, pois tiveram de procurar outro lugar para ficar. 

Ironicamente, a maioria foi para a rua, passando a dormir pelas proximidades da Praça Tiradentes. Isso, no meu entendimento, tornava sem efeito o trabalho da casa; os seis meses passados lá, de nada valeram.

Num mesmo dia, a casa recebeu dez novos internos, que vieram ocupar o lugar dos que saíram ou foram desligados. Novamente, fui procurado pela Isabel; queria me transferir para um quarto em que só tivesse internos recém-chegados. A intenção era a de que eu passasse para eles as normas da casa, facilitando a adaptação e  acenando para a volta dos bons tempos. Embora a ideia não me agradasse muito, aceitei a incumbência e me transferi para o quarto dois. Não surtiu grande efeito, pois logo descobri que os recém-chegados eram todos antigos fregueses da Fundação, com passagem por várias de suas unidades, portanto, portadores de vícios difíceis de saírem com algumas palavras, conselhos ou exemplos.

Por estarmos, quase todos, próximos do fim de nossos prazos de permanência, Chagas e Valdecir sugeriram que deveríamos alugar uma casa, onde todos morassem juntos, como se fosse uma grande família, dando, assim, continuidade ao nosso convívio no Projeto. Ideia bonita e interessante, se não fôssemos um bando de desempregados ou subempregados. Chagas trabalhava em obras e Valdecir era funcionário de um hotel, ambos abandonaram seus empregos e viraram camelôs, influenciados pelo sucesso do Fábio do Biscoito que, diziam, ganhava muito dinheiro com essa atividade. Armaram suas barracas na Rua Uruguaiana, a rua mais visada pelos fiscais da prefeitura, mas depois de terem suas mercadorias apreendidas várias vezes e viverem correndo da repressão aos camelôs, desistiram.

Da turma, os poucos empregados era o Domingos, um mato-grossense que trabalhava no Mac Donald’s da Rua São José, e o Valdemir, que era atendente numa confeitaria na Glória. Pelo meu lado, ainda estava apenas no jornal, aos sábados. Mesmo assim, partimos para procurar a casa. Nela moraria eu, Chagas, Valdecir, Menor, Paulista II, Domingos, também conhecido como Mac, Valdemir, dentre outros; Geraldo e Lúcia também faziam parte da turma. Pelas dificuldades normais nesses casos, como fiador ou altos depósitos, o entusiasmo inicial foi acabando até que a história terminou no esquecimento.

No meio de todo o caos, uma novidade me devolveu a esperança no futuro: após uma procura que durara mais de dois meses, eu tinha  conseguido um emprego de carteira-assinada e salário, mais ou menos, compatível com a função; fui contratado pelo síndico Eliseo López, um espanhol, como auxiliar administrativo, no Condomínio do Edifício Catete Center, no Flamengo. Não se tratava de uma empresa propriamente falando, era uma administração própria, mas o prédio era muito grande, cerca de quinhentos e vinte apartamentos, e tinha bastante serviço. A minha função seria cuidar do departamento de pessoal, além de auxiliar o administrador do prédio, Alberto Pereira. Dessa vez, lembrando os ensinamentos recebidos no Albergue da Harmonia, resolvi não tocar no assunto “Fundação Leão XIII”. Quando perguntaram onde morava, criei uma tia que não existia e disse morar com ela; o endereço era o mesmo em que funcionava o Projeto, ou seja, a Rua Dom Pedro I, número 28; colou. Assim, 02 de dezembro de 1991 foi o meu primeiro dia de trabalho: tudo o que eu precisava para sair do Projeto e retomar a minha vida, entretanto, isso ainda demoraria um pouco; se antes pensava que quando arrumasse um emprego todos os meus problemas estariam resolvidos, agora, empregado, sabia que não era bem assim; primeiro, precisava passar pela experiência de noventa dias e torcer para me manter empregado, só depois, poderia resolver de vez o meu problema de moradia. Pensando assim, decidi ficar no Projeto até que isso fosse possível. 

 

 

Capítulo final

 

A VIDA SEGUE

 

Aproximava o natal de 1991, apesar de todas as tentativas, as coisas no Projeto não melhoravam, e o convívio era cada vez mais difícil, pois cada novo interno que chegava era mais um problema que se anunciava. Isabel teve a ideia de fazermos uma festa para comemorar a data e resultou num almoço feito pelo Jorge Cozinheiro – que estava de volta, depois de ficar morando uns tempos fora – com a ajuda das cozinheiras da casa. Antes, foi apresentada uma peça escrita por mim, com a participação do pessoal grupo que ainda estava por lá e um coral, também de internos, ensaiado e comandado por um interno que tinha chegado a pouco, conhecido como Professor, dado ao fato de estar sempre portando livros, cantou a tradicional “Noite Feliz”. A coordenadora Carmem esteve presente, além dos funcionários, assistentes sociais e internos. Tudo muito simples, mas de muito bom gosto, o que fez lembrar os bons dias. A novidade foi a presença do Manoel, também chegado naqueles dias, o sergipano que conheci no albergue da Harmonia, o que vivia recitando Shakespeare, de quem possuía alguns livros, ricamente encadernados, de fazer inveja que, afirmava, comprara num sebo. O dado triste ficou por conta do Sérgio, o interno do quarto cinco que saíra para morar no emprego, que estava de volta completamente transformado e transtornado: estava se drogando novamente e vivia jogado por ali, dando a entender que logo viraria um mendigo de verdade.

Logo depois do natal, alguns internos começaram a definir seus destinos: Valdecir, por exemplo,  resolveu retornar para Osasco, São Paulo: tinha intenção de voltar para a esposa e os filhos, que abandonara ao vir para o Rio de Janeiro; e Paulista II, o Paulo, que voltou para a casa da mãe, na capital paulista. Figura engraçada, Paulista II era um verdadeiro menino grande, que chegou ao Projeto no mesmo dia que eu – fomos, na verdade, atendidos ao mesmo tempo –, e tinha um sotaque caipira de interior muito forte, embora afirmasse que ser natural da capital paulista; afirmação confirmada pelo Chileno, que dizia conhecer sua família. Recebeu o apelido de Paulista II por causa do Valdecir, que era também conhecido como “Paulista”, gostava de construir balões e construiu um, no Projeto, que subiu aos céus, para sua alegria e admiração dos internos. Quando falavam que soltar balões era proibido, pois poderiam provocar incêndios, ele retrucava dizendo que  um balão subindo no céu era a coisa mais bonita do mundo e que isso justificava o risco. Chagas, Menor, Domingos, o Mac, e eu fomos levá-los à rodoviária Novo Rio; os dois viajaram no mesmo dia e hora. Na despedida, bateu uma tristeza: no fundo, era a certeza de que dificilmente voltaríamos a nos encontrar.

Com um telefonema, reatei o contato com a minha família. Falei com a Eloisa, minha irmã mais nova. Não foi fácil explicar os meses de ausência. Para ser sincero, não tinha noção de ter ficado tanto tempo sem dar notícias; talvez pelo fato de terem acontecido tantas coisas, eu não tenha sentido o tempo passar. Ainda assim, não abri o jogo, inventei algumas desculpas e, mesmo levando muita bronca, decidi nada dizer sobre o que tinha vivido nos últimos tempos, ninguém iria entender; nem eu  mesmo entendia.

Veio o ano novo. O ano de 1992 chegou trazendo chuvas torrenciais e mais problemas: o sobrado que havia em frente, uma construção de dois andares do século 19, onde funcionava a oficina do Ruço, teve suas estruturas abaladas com as chuvas; parte do segundo andar desabou e atingiu a rede elétrica, fazendo com que o fornecimento de energia fosse cortado, deixando-nos no escuro. Durante alguns dias, esperou-se que a Fundação resolvesse o problema e nada.  As chuvas se intensificaram e o prédio ruiu totalmente sobre a parte da frente da casa, obstruindo os quartos um, dois e três, levando a Defesa Civil a isolar toda a área. Passamos, dessa forma, a sermos impedidos de entrar. A permissão era apenas para pegar os objetos pessoais e um interno de cada vez, acompanhado de um bombeiro.

O serviço social, sob o comando da assistente social Cláudia, reuniu o pessoal e confirmou o que todos já esperavam: a partir daquele dia, o Projeto Casa de Acolhida deixava de existir, definitivamente, e todos seriam mandados de volta para o albergue da Praça da Harmonia. A maioria aceitou a transferência, sem grandes problemas, entrou no ônibus da Fundação e partiu não se dando conta de que voltava para o começo. Alguns, até se divertiram com a situação; para eles, estar ali, ou em qualquer outro lugar, não fazia diferença. Cheguei à conclusão de que tinha acabado para mim: a partir dali, andaria com as minhas próprias pernas, era agradecido à Fundação Leão XIII por tudo, mas não tinha volta.

Meu prazo no Projeto já tinha vencido há mais de um mês e só fiquei ali mais esse tempo pelo meu bom relacionamento com o serviço social, mesmo assim, aquele não deixou de ser um momento de muita tristeza, apreensão e medo; embora, de certa forma, esperado, o fim me pegou de surpresa, não só a mim, mas a quase todos que tinham intenção de dar outro rumo para suas vidas. Juntamente com Chagas, Menor, Domingos e alguns outros, eu passei uns dois dias nos escombros da casa, escondido do pessoal da Defesa Civil, que fazia plantão no local: nós utilizamos os dois quartos que tinham ficado intactos. Nesse meio tempo, Chagas e Menor se mudaram para um barraco na comunidade Cidade de Deus, em Jacarepaguá.

Mantive o trato feito com Domingos e Valdemir nas areias da praia de Copacabana, logo após o espetáculo da queima dos fogos que acontece todos os anos, de alugarmos um apartamento juntos e saímos à procura, pois estávamos empregados e acreditamos que isso facilitaria, porém, encontramos muita dificuldade e a ideia de um apartamento-conjugado teve de ser substituída; não tínhamos fiador e nossas condições somente davam para alugar um quarto e foi o que fizemos: alugamos um quarto numa casa de cômodos, num sobrado da Rua do Senado, no centro da cidade. Tratava-se, para ser honesto, do que popularmente chamavam de uma “cabeça de porco”; ali viviam, em quartos minúsculos, travestis, prostitutas, trabalhadores, ladrões, desocupados e famílias inteiras. Cheio temores, abri o jogo com o patrão: relatei a minha real situação e, para minha surpresa, ele aceitou me dar um adiantamento para eu pagar minha parte no depósito do aluguel do quarto. Assim, num sábado ensolarado, após vários dias de chuva, deixamos o Projeto, apenas eu e o Domingos, porque o Valdemir, como eu saberia depois, aceitou voltar para o albergue da Harmonia.

Antes de deixar o que restou do Projeto Casa de Acolhida, dei uma última olhada nos destroços da construção e não pude conter a emoção; por mais de seis meses, eu tinha vivido ali, foram dias difíceis, mas também dias de alegria; ali, eu sonhara com a possibilidade de que o “Projeto” vingasse e pudesse ser o ponto de partida para outras casas que viriam a beneficiar tanta gente; ali, eu encontrara apoio e amigos; ali, tinha readquirido a fé na vida, e era dali que eu partia para o ansiado passo de volta à vida tida como normal. A certeza do bem que aquele lugar me fez, me deu forças para seguir em frente. Junto com o Domingos, atravessei a rua, disposto a escrever um novo capítulo da minha vida.

A  partir daquele dia até a sua demolição, o “Projeto”, ou o que restou dele, seria habitado por Baiano que, por algum tempo, acreditou ter conseguido nos expulsar e que o espaço ficara para ele e seus garotos.

O tempo passou e consegui me manter estável no mesmo emprego, com isso tive de volta o meu convívio social. Depois de morar no sobrado da Rua do Senado por mais de um ano, me mudei, ainda na companhia do Domingos, para um apartamento-conjugado no Flamengo. Pouco tempo depois, seria a vez de ele ir embora; desempregou-se  e resolveu voltar para sua terra natal, no interior do Mato Grosso. Quanto a mim, ainda não consegui realizar o meu grande sonho de poder viver exclusivamente da profissão de ator, porém já tenho dado alguns passos nesta direção.

 

 

 

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